dentro de mim como um voo de pássaro planando no azul – Três poemas de Laís Araruna de Aquino

 

VIDA DE CAMPO

quando chega ao campo, minha vó logo
se deixa ficar ao terraço, à cadeira de balanço,
os pensamentos para cá e para lá
como a gente descansa nessa paragem do tempo
verde, quando faz chuva, nos meses de junho a agosto
nos demais meses o mato fica seco
a gente descansa nessa paragem do tempo
e eu lhe digo que do pouco que faço
também descanso
um dia me deixarei ficar toda a semana
morarei aqui
com meus cachorros, o rumorejo das árvores
ao vento e toda a saparia
minha vó ri e diz é tão bom
nem precisa de gente
eu rio e repito nem precisa
de gente
ao longe, em uma estrada que meu olhar alcança,
um ruído de motor de carro
minha vó fala sobre o silêncio
e sua voz e o silêncio se confundem

no campo, o vento é o maestro de todas as coisas
de tudo que rege,
o ar, o balanço das palmeiras, o voo
dos pássaros e sua fala de canto,
de tudo isto, sobe o silêncio
e no corpo adentra – imenso

 

 

NOTURNO N. 3

as nuvens estão baixas e cinzentas
como carvão queimado
a lua –
um pingente barato
ou, talvez, a coisa em si, satélite
não apareceu no firmamento
o céu está despovoado –
há no vento um presságio insignificante
quiçá, um barulho nos cômodos do apartamento
mas certamente não um chamado ou um embuste
tudo é excessivo para aquele que busca
colmatar as lacunas –
meu corpo está aberto como uma vala seca de rio,
exposta e indefesa aos vazios que a noite carrega
na transparência opaca das coisas
não chegaremos muito longe
todos os espelhos foram quebrados
desde o expurgo do último metafísico
nossos olhos piscam, confinados em arquiteturas
não virá a nave com que atravessaríamos
as veias escondidas deste breu
mas nunca se sabe a cadência dos meteoros
que podem riscar o céu
não esperes o fulgor de uma eternidade
de que não saberias o uso
a noite é este brilho interrompido –
para nós, que esperávamos a razão total
sob a glacialidade de uma estrela
mas é nesta noite – e não em outra maior
que nos cabe perceber a sua chama pura e inútil,
o seu afago tão largo como o vento,
ó morada transitória do sentido,
onde, por um momento apenas, nossos corações se acalentam
e depois se extraviam

 

 

MAIO 2018, NAS GRAÇAS

eu então sabia que a vida seria isto
enquanto descia a rua com meu cachorro
eu sabia que descia aquela rua no entardecer
da minha juventude, uma rua de mangueiras, jasmins e acácias,
em cuja esquina uma buganvília jorrava
em flor sobre os muros de uma casa,
renovando-me o gesto de calma contemplação
contra o meu espírito obstinado em velhas questões
seria isto –
passeios e intermitências, pensamentos engastados
em nomes e sínteses inúteis, mas no caminho não-raro
uma rua desaguava no céu polido de azul
ou uma lufada de vento fresco saciava o verão quase eterno
a cada manhã, logo cedo, os raios do sol ainda baixo,
perto do horizonte, iluminavam-me a face sem aquecer,
devolvendo a promessa dos dias como um sábado sem deveres
ou uma infância fora do tempo
seriam essas delicadezas inesperadas do cotidiano
e, por isto mesmo, esperadas sem ânsia e inquietude
seria isto e a consciência latejando como quem diz
estás viva e é isto ou nada
eu sabia que seria isto
a vida se consumando ininterruptamente
nos seus pedaços, sem uma borda ou um anteparo
de onde pudéssemos conservar intacta a memória
dos dias, sem a contaminação de tantos outros dias
perdidos na malha dos anos;
a vida se consumando sem o fulgor do bronze
ou de incêndios violentos, como uma perda gradual
que dá por si tarde demais
eu me despedia das quimeras, dos clarões duradouros de felicidade,
que pudessem alcançar todo o caminho
e ressignificar os fatos mais aleatórios, redimindo-os
em uma vida cheia de sentido –
as coisas ficavam para trás mais sutilmente
como o rastro de um barco no oceano
ou a fumaça de algum fósforo logo dissipada
talvez a mudança mais perceptível fosse o meu
rosto examinado atentamente, uma ou outra
marca que insistia em não abandonar,
a recuperação inexata da pele, que não fechava
as aberturas do tempo
por isto, por essas configurações que se perdiam
a todo instante, eu tinha de me deixar arrebatar
pela dignidade de cada coisa no mundo e iluminar-me
de sua presença, para que o sentido nascesse
dentro de mim como um voo de pássaro planando no azul
desprovido de direção, um voo que é todo voo
e não outra coisa ou desejo de ir ou retornar
um voo como um gesto vibrando no ar
no seu puro movimento
o sentido nasceria ao deixar-me existir
ao lado de cada coisa existente,
de que somos talvez apenas o mensageiro –
cada coisa –
as folhas do bambu vibrando sobre a mesa
o azul acima das antenas dos edifícios
exaurindo-se no fogo lento do horizonte
a hora escorrendo na boca da noite até encontrar o sono –
eu sabia que a vida seria isto ou qualquer outra coisa
escoando veloz dentro do tempo
veloz e volátil como o perfume das espadas de são jorge
numa noite ordinária de maio
e dentro desta noite meu coração batendo compassado
no meio de invisíveis destroços e nascimentos
até que o fluxo abandone o meu corpo
e paire acima, na copa das árvores, ondulando
no movimento eterno das massas de ar, indo e vindo
incessantemente, sem dar pela minha ausência
neste mundo

 

Laís Araruna de Aquino nasceu em 1988, no Recife, onde vive. É autora de “Juventude” (Ed.Reformatório, 2018), ganhador do Prêmio Maraã de Poesia 2017.

 

 

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This Article Has 1 Comment
  1. mario francisco spanghero Reply

    Laís é pernambucana com ecos mineiros na voz de seu lirismo tão novo, tão renovo, tão cana caiana mas despida de ênfase. Eu confesso que sou um leitor humilde – talvez preguiçoso -, por isso a poesia de Laís me é uma dádiva à qual sou grato: o lirismo de Laís, seu canto quase cantochão, segue em terreno agreste, de pedras, mas até os tropeços que nos fazem trepidar são veredas sombreadas, protetoras, que nos tornam cúmplices sem sustos, mas repletos de espanto, o espanto que só a Beleza suscita!

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