Fernando Andrade entrevista Caio Garrido

 

FERNANDO ANDRADE Como foi desenvolver este personagem do Marcilius, um ser com uma sexualidade flutuante e porosa e de uma carga simbólica e semântica bem interessante. A religião se contrapondo à sexualidade é uma carga poética bem criativa?

CAIO GARRIDO – Primeiramente obrigado pela leitura atenta.
O Marcilius a mim me parece um imbricamento de seres. Não é propriamente mau, mas se vê que também não é bom. Mas evidentemente que seu desregramento, sua hybris, o faz cometer atos nada benéficos. O que o leva a chegar ao ponto que chegou? Sua voracidade? Seus desejos, sua sexualidade desenfreada? Basicamente, o que ele traz em si é muita perversão. Eu queria construir um personagem que funcionasse como um representante da questão que gira em torno dos supostos líderes religiosos perversos da atualidade e de sempre. E mais especificamente, ir em direção ao que acontece no mundo da religião evangélica. Então, eu queria mostrar a genealogia de um pastor evangélico corrupto/corruptível, desde sua infância, enfocando família, adolescência e decadência. Porque alguém se torna um pastor tal qual vemos por aí no país? Essa é uma questão muito crítica pra atualidade do país. Uma invasão da religião na política, uma perversão social, iludindo massas, distorcendo e criando delírios no que concerne à própria religião e à política. Porque o ser humano é levado a estar num grupo como estes, que tão pouco lhe beneficia, que tanto o aliena? Obviamente que filósofos e pensadores já se debruçaram sobre isso, como no caso do conceito de servidão voluntária. A relação entre poder e sexo é clara também. A religião não é um contraponto à sexualidade no livro. Mas uma coisa só. O que o leva a ser religioso não é uma religiosidade consciente. Pode ser que seja uma busca de poder, de ampliação desse poder pessoal que já existia, e que precisava abarcar mais coisas e mais pessoas. Já a religiosidade humana é outra coisa. O problema é o uso que fazemos das religiões. Eu quis viver esta experiência no livro. Não explicar. Mas vivê-la através do personagem. A carga poética que falaste, pode ser que venha de um traço de busca de transcendência (pervertida) que existe em Marcilius, na sua luta por conquistar mais e mais mulheres.

 

FERNANDO ANDRADE – O narrador parece que tem uma voz distanciada dos fatos e dos personagens. Parece que há um anteparo entre a voz que cria e potencializa o discurso todo e o magma textual com toda a massa maleável (as fases – oral, fálica, anal) da história de uma formação por assim dizer. Fale um pouco disso.

CAIO GARRIDO – O narrador é uma entidade (desconhecida) estranha neste livro. Pode se comportar da maneira que você falou. Mas também ele se mete na história, quer a palavra em determinados momentos, como se dissesse “Eu sei, eu sei sobre isso! Disso eu quero e posso falar!”. Oras se comporta como um sábio, e outras com grande extravagância. Às vezes é áspero, crítico, pretensioso, preconceituoso. Às vezes poético também, e em outros momentos com laivos de onipotência, querendo mudar como Marcilius é… O narrador é um caso a parte neste livro.

 

FERNANDO ANDRADE  Há certo estudo de uma sexualidade cambiante não só no Marcilius como em outros personagens. E a fluidez de narrar parece que contamina também o caráter dos personagens. Mas voltando um pouco a pergunta à cima, o narrador não tem pendores de juiz, ele tem uma certa ironia, mas até que ponto esta é um juízo de valor sobre a vida-biográfica dos personagens?

CAIO GARRIDO – Quando o narrador diz assim: “Torto é o vento que abana minha cabeça de lado a lado. Imprudente, não deixo Marcilius pensar. Faz automaticamente o que todos esperam, e acha que está chacoalhando o universo com suas babaquices infantolóides.” Este é um momento onde o narrador se sente no direito de dar seus pitacos sobre a vida (de quem ele está escrevendo, criador). Seria uma criatura que não responde aos anseios do criador, ou de um pai. Ao mesmo tempo o narrador se revela, dizendo que ele (narrador) é que é imprudente. A responsabilidade de Marcilius ser daquele jeito se torna do narrador. Em alguns outros momentos, faz algumas avaliações, como neste: “O diálogo entre eles era uma delícia, uma referência para futuras descrições de boa conduta e citações em livros de tese de doutorado.” O narrador tem suas sutilezas. Ele é irônico, como disse. Em outro momento ele narrando diz: “Marcilius precisava não evoluir, mas sim regressar a um estado anterior, para depois se tornar algo um pouco menos bizarro.” São momentos em que há um certo juízo de valor sobre a história do personagem que está contando? Talvez. A denominação “bizarro” é de responsabilidade da figura do narrador.
E voltando à questão da sexualidade cambiante, isso é verdadeiro. É possível se aventar que a amizade ambivalente de Marcilius com Rodriego, por exemplo, regada a muita rivalidade, tem características de um homoerotismo. Uma homossexualidade latente.

 

FERNANDO ANDRADE – Para fechar com foi o trabalho de lapidar a linguagem? Me parece que ela é um elemento em si, dentro do todo contexto, formulante ou não de todo saber sobre as questões que passam pelo livro. fale um pouco disso.

CAIO GARRIDO – Marcilius é um desajustado inquieto. A verdade é que este é um livro, onde foi muito mais o personagem que me pegou pelo braço e me levou pra onde ele queria, do que propriamente eu que tenha planejado seus caminhos, ou como ele devia ser. Juro que até queria que ele fosse um bom cristão no início, mas ele não deixou. Talvez um autor versado em filosofia pudesse melhor dizer sobre este protagonista. Pois até, quem sabe, é nesta falha em saber dizer do personagem que reside a possibilidade do seu se fazer existir. Descubro ao responder essas questões o quão difícil é falar do que se escreveu. O quanto o que está ali foi da ordem do permitido, do sentido, muito além do planejado. Muito longe de ser um processo consciente. Tenho quase que me auto-investigar ou analisar pra me dar condições de fazer isso. Há uma constante falta de juízo em Marcilius. Um auto juízo ou um discernimento sobre a própria história que talvez só apareça lá no final. Quando se olha para a vida em retrocesso. Talvez o livro seja esse excesso. Essa falta de juízo e de rédeas que dei ao protagonista e ao narrador pra que não houvesse tempo de ajuizamento, tempo de refletir sobre os próprios atos. Somente uma coisa estava consciente em mim pra escrevê-lo: que o andamento da leitura pudesse ser acelerado, explosivo, como se descesse de rolimã sem fôlego uma ladeira. A escrita, num jorro, num fluxo intenso de associações livres. Talvez, pensando agora, seria produzir na linguagem esse efeito, a ressonância de não dar tempo ao leitor para criar juízos. O que eu queria é que esse romance (é um romance?) fosse um lugar de absoluta liberdade. De eu até de repente ter que prestar contas por ser tão bobo, por exemplo. Pelo que puder estar escrito ali mesmo, ou pela liberdade dada ao narrador e o grau de inconsequência daquilo que ali é dito, que em alguns momentos é tão distante e distinto daquilo que penso como pessoa.

 

 

afernandoab 150x150 - Fernando Andrade entrevista Caio Garrido Fernando Andrade – escritor, poeta, crítico literário, jornalista e parecerista. Autor de 4 livros de poesia, o mais é recente Perpetuação da espécie ( Penalux, 2018).

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This Article Has 1 Comment
  1. VANESSA Reply

    Bela entrevista! O Marcilius é a representação direta dos atuais “líderes” religiosos que se aproveitam da religião para saciar os seus desejos sexuais.

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