REFLEXÃO URINÁRIA
quando pinga a luz
meio acesa
meio morta
no frio do banheiro
vejo a liquidez da minha história
espelho turvo pela fumaça
umidade relativa da mágoa
que escorre por sobre minha imagem
e estou nu, em apelo
aos sonhos que meu corpo ainda não expeliu
através dos poros
escorrem
escorregam de mim
me cortam
em fatos tão macios
quanto o assento do vaso:
vivo a perda de meus restos,
ou sou resto de minhas perdas?
enquanto faço essa higiene de meus pensamentos
meu coração aperta,
e penso agora que sou água
pois penetro em tudo que toco
mesmo dando descargas infinitas
na saudade
as águas do mundo
já correm em mim…
INFANTARIA URBANA
a criança dorme
satisfeita
no colo macio do amor
o menor atravessa a noite
acordado
é a oportunidade
que não pode passar
a criança brinca
se diverte
no tapete da sala
que cobre as chagas varridas
pelo egoísmo capetalista
o menor brinca
com coisa séria
na função entorpecente
de sobreviver à esmola sádica
a criança sorri
o menor mostra os dentes
pra selvageria cidadã
a criança fica doente
o menor fica louco
a criança tem
o menor pega
a criança fantasia
o menor é fantasma
alucina o corpo
pra construir alguma alma
criança é esperança
menor é bandido
criança é o futuro
menor é semente do mal
criança é levada, faz pirraça
menor é levado
por conselho
por autoridade
pelas sombras
criança leva palmada
menor leva paulada
criança desperta carinho
menor desperta medo
criança toma banho de shampoo
menor toma banho de ódio
a criança é o pai do homem
o menor é o filho do caos
a criança escolhe o que vai ser quando crescer
o menor precisa crescer
pra continuar a ser
sem escolha
sem chance
menor não tem infância
mas é guerreiro do asfalto
é infante!
ESTATUTO DO DESARMAMENTO
salve-se quem puder!
entramos em colapso
nossos representantes
não nos representam!
eles dizem que,
pra nossa segurança,
temos que nos armar
de desamor
temos que nos desamar!
é o imperativo deles…
não se tolera mais a tolerância
religiosa, de pele, de cor, de corpo
eles rezam em nossas cabeças
essa doutrina:
precisamos intolerar
a forma que cada um tem
de amar
não vejo mais esperança
em quem só quer armar
e não amar
vejo nas ruas os falos saltitantes
das mãos desamadas
e desalmadas
que marcham sem sentido
e sem sentir o outro
vejo e entristeço…
mas não esmoreço!
já que amando, advogo
pelo amor armado de desejo
e esse estatuto do desamamento
eu revogo!
e revoluciono!
a cada sorriso que faço parir
das faces armadas
e desamadas.
Manoel Ferreira Jr. é escritor, poeta, psicólogo graduado na Universidade Salgado de Oliveira – RJ. Trabalha no campo da saúde mental, é ativista na luta antimanicomial. Atualmente trabalha na clínica e participa de eventos culturais e movimentos sociais.
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