DE VACA, DE LOBO E DE HOMEM
(DA CERCA QUE SEPARA E DA LAMA QUE UNE)
Não foram os pelos do rosto que me despertaram, nem minhas costas cada vez mais curvas, o rouco da voz, as unhas de garras. Foi o estômago, eu tive estômago de lobo e isso fez de mim um lobo. Não bastaram a sopa, o café, pão com queijo, maçã, meu apetite era de carne sangrando, presa de morte recente. Eu voltava do açougue com duas sacolas, uma em cada mão e eu tinha mãos, por mais pelos que as cobrissem, ainda não eram patas. Um dos sacos era destinado à minha família, minha mulher refogava cebola, alho, fritava a carne vermelha até que perdesse a memória do sangue. A outra era minha, eu comia em pé, nos últimos tempos de quatro, nu, no chão da cozinha, o sulco da carne pingando nos pelos. Fui embora quando tive urgência de caçar. Não me chegava mastigar carne morta, precisava matar, afundar os dentes em carne viva, estraçalhar coração ofegante. No dia em que fui embora, minha mulher não chorou. Silvia, era o nome dela, chorou todos os dias que precederam o dia em que fui embora. Eu tive duas filhas, Ana e Gabriela, eram minhas até quando já era lobo, mas não completamente lobo. Eu lembro dos cabelos escuros da minha mulher, o cheiro do doce de cidra fervendo no tacho, o pé de jasmim, a árvore de natal de neve de algodão. Não sei o nome que tive, mesmo me lembrando o exato nome dos meus pais, dos avós paternos e maternos, da cachorra que eu ganhei aos doze anos, Balu. Meu tio a deixou de herança, um tio que mal conheci, só sabia que se chamava Valter. Tinha três filhos e deixou a cachorra para mim, escreveu uma carta antes de morrer de câncer aos quarenta e seis anos declarando que a cachorra era minha, não aceitava que fosse de mais ninguém. Eu achava que ele nem sabia meu nome, mas estava lá na carta, deixo a cadela Balu para meu sobrinho e em seguida meu nome, o nome de que não me recordo.
A cachorra chegou numa caixa de madeira, dessas de guardar fruta em feira, já era adulta, tinha seis, sete anos. Dentro da caixa, além dela, um trapo de cobertor azul e um papel datilografado. Uma história sobre uma guerra que durou cento e dezessete anos, entre duas famílias inimigas e matou exatas trezentas e quatro pessoas ao todo, cento e cinquenta e duas de cada lado, além de duzentas e dezesseis vacas e noventa e dois cavalos. Quando a guerra acabou, uma das famílias estava dizimada, completamente extinta, as casas destruídas pelo fogo, a terra salgada. Do outro lado sobrava uma velha, uma menina de oito anos, um menino de dez e a cachorra Balu. Moraram todos na única casa que resistiu ao século de guerra e sobreviveram cozinhando a grama e os cogumelos que brotavam nos troncos das árvores mortas. Afora isso, vez em quando o menino abatia uma paca ou uma pomba do mato, quase nunca comiam cobra, porque o veneno impregnado na carne importuna a garganta. A velha era uma velha que devia ter morrido há muito tempo, mas não morria nunca, tinha mais de cento e trinta anos. Não casou, nem teve filho e era tataravó do menino e da menina. Só falava no sono, cantava músicas antigas dos bichos convertidos em gente e das gentes convertidas em bicho. Contava do pai trabalhando no matadouro, golpeando as vacas uma a uma, uma porretada em cada cabeça, a vaca refugando a proximidade da morte, o barulho dos crânios partidos, que nem tijolo espatifado no chão. Uma vez contou para o menino, a menina e a cachorra, sem saber que contava, ferrada na ignorância do sono, a história do homem transformado em vaca. Nasceu homem. Morreu vaca. Dormiu com pernas, pênis, um estômago só e quando amanheceu o dia ostentava dois pares de teta molhadas de leite, quatro estômagos, um rabo e um couro preto desenhado de manchas brancas. Falava intercalando as palavras com muuuuu, não contava da filha que tinha ido estudar na cidade e nem pedia à mulher que passasse café novo e fritasse o pão na manteiga. Dizia da vastidão do pasto, da água fresca no cocho, do zimbro da madrugada que gelava o lombo, dos bezerros desmamados à força, o choro mugido da tristeza deles, os homens sem luvas bulindo o ubre até empanturrar o balde. O padre do povoado sentenciou que o homem não era mais homem, e que como vaca não poderia viver embaixo de telhado, com cama, cadeira e talha, bebendo vinho de garrafão e comendo carne passada na farinha. Deveria estar no curral, mascando capim e defecando o bagaço da grama ruminada, sendo coberta pelos machos para cumprir sua sina de parir bezerro, lotar vasilhas de leite branco e se o destino assim quisesse, ofertar o crânio ao malho do porrete. A filha veio da cidade para assistir ao pai abandonar a casa para ceder as tetas aos bezerros sem mãe. O homem viveu como bicho exatos seiscentos e nove dias, pariu dois bezerros, deu leite para dezenove e serviu de desafogo para onze machos reprodutores. Não morreu porque seus anos de homem somaram-se à vida de vaca, seu tempo de animal era recente e era o que valia no contar da idade. Morreu porque decidiram matar. Conservava hábitos de homem que não era, vez em quando enjeitava o capim e clamava mugindo por café fresco. A filha, que visitava o pai a cada vez que voltava ao povoado, levava fotografia dele homem, ele ao lado da mãe debaixo do ipê roxo, ele criança dentro da carriola de carregar feno. A vaca chorava, não como choram as vacas, mas como choram os homens que viram vacas para sempre. Em algum lugar entre os tantos estômagos, resistiu um miolo de gente. O padre considerou que o híbrido de homem e bicho era feitio do demônio, somente o satanás para engendrar tamanha extravagância. Sentenciou morte. No dia marcado, estava lá o executor, que era o pai da velha que sobreviveu à guerra centenária, o padre e o povoado todo. A mulher chorava e a filha também, o padre não chorava porque era o juiz. A vaca pelo corredor do matadouro, só ela fazendo fila, ninguém na frente para dar coragem ou covardia. O povo desejando que naquele instante fosse mais bicho do que gente, para que não tomasse consciência de morrer e morresse na boçalidade de animal. O homem de porrete para o alto, esperando o perto para acertar a cabeça e a vaca começou a rezar. Antes mugia, as bolotas dos olhos lacrimejando, havia quem dissesse que chorava. Agora ave-maria. Rezou sete ave-marias sem mugir, enquanto seguia o corredor do abatedouro, cheirando a esterco e sangue velho e também a vísceras e tripa lavada com água sanitária. O executor não teve valentia de golpear a vaca que rezava, de modo que o padre tomou o pau e cumpriu o arbítrio por ele próprio proferido. A falta de prática e força impediram a consumação da morte e a pancada abriu um talho na cabeça do animal, que agora rezava com o sangue escorrendo no focinho e nos olhos. Ninguém sabe se intencionado de maldade ou de misericórdia que o povo auxiliou o cumprimento da deliberação. Trinta e nove homens, quarenta e quatro mulheres, incluindo a esposa e a filha, vinte e cinco crianças e um padre tomaram lascas de granito e ripas de madeira e brutalizaram a vaca até que estivesse morta, a carcaça arriada no lodo do chão, os estômagos, os quatro, estraçalhados dentro do couro estampado.
Eu ainda receio a morte, minha sobra de homem. Não temo que uma bala me alcance, enquanto corro a pradaria nevada, não tem neve, prado, espingarda. Meu medo é que me escamem o pelo a pedradas ou que centenas de cachorros me tocaiem e arrebentem traiçoeiros a pele fina que me protege a barrigada. Pedra, lixo e cão é o que se encontra por aqui, o refugo, o que não cabe lá é arrastado para a borda de cá. Eu, que desejava as jugulares mornas nos javalis e dos cervos, enterro o focinho nos potes de iogurtes azedos, varrendo o fundo das embalagens com a língua. Quando cheguei, ainda caçava cachorro, sempre filhote. Mordia o pescoço para não dar tempo do bicho ganir a mãe e saía em disparada correndo o lixo. A cadela, quando dava falta da cria, não podia acudir, eu já tinha rasgado o coraçãozinho nos dentes, mastigado as tripas, descolado a carne do osso. Eu confiava que bicho não vinga, que peleja o possível e quando não pode mais, resigna. Bicho diverge da natureza de gente, que pretende vingança, mata de maldade, sem fome. Não tombaram a cerca que apartava homem de animal, desconfio que só moveram uns metros, para o lado de cá ou de lá. Tivessem derrubado, estavam aqui comigo minha mulher Silvia e minhas filhas Ana e Gabriela, vestidas de pele de lobo, partilhando de mim os restos de comida. A mudança do lugar da divisória fez com que os bichos tomassem gosto em hábito de gente. Por isso a cadela me vingou. O filhote já estava morto, a carne fermentava no estômago, eu tinha enterrado a pele e o que restaram dos ossos para não fuçarem os urubus carniceiros. Ela veio, sozinha, galopando o lixo, os olhos salientes de raiva que bicho não tem, não deveria ter, tivesse a cerca no lugar destinado. Eu era três corpos maior que ela. Eu lobo, ela cachorra. Ainda assim temi, a raiva dava a força que ela não tinha, ódio de mãe de filho matado. Até hoje, debaixo dos pelos, guardo as cicatrizes das dentadas. Parei de caçar. Contentei com o iogurte talhado, o pão de bolor, as carniças abandonadas pelos urubus. Meus caninos estão perdendo as pontas, minha passada não tem agilidade caçadora, meu corpo pesado de sarna. As poucas fêmeas que me deixaram montar o cio pariram proles que não eram minhas, cachorrinhos marrons, brancos e pretos, nenhum cinza, nenhum canino de agulha. Minha genética de lobo não vai ultrapassar minha existência. Nasci homem e morrerei lobo, sem descendentes. Ninguém saberá que eu fui lobo. Nem que fui homem. Nem que fui.
Maria Fernanda Elias Maglio nasceu em Cajuru -SP, é defensora pública e trabalha fazendo a defesa de pessoas pobres que estão cumprindo pena. Sempre foi apaixonada por literatura e há alguns anos escreve suas próprias histórias. Seu primeiro livro, “Enfim, imperatriz” (Patuá, 2017), venceu o Prêmio Jabuti 2018 na categoria Contos.
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