Alcateias
Amanso um lobo
que toda noite
vem roer minhas
pálpebras.
Pelo grosso e áspero
que arranha a respiração.
Reclina-se com o
peso de alcateias
sobre minhas costelas
e saliva a fome da manhã.
Uiva silêncios.
Não aceita água qualquer,
muito menos a brandura
na têmpora.
Imóvel em meu peito,
observa a frágil janela aberta.
Não há correntes que o prendam,
nem por isso sonha
a liberdade do campo.
Amanso um lobo que vem
saciar seu cansaço
na rigidez da minha sede.
Asas d ́água
Passei a vida ouvindo a
afirmação das tias:
“formiga de asa é
prenúncio de pé d ́água.
Dá azá matá”.
Curioso, compadecia-me ao
observar a ruína do voo,
a diferença nas ínfimas asas,
como se em cada transparência
repousassem partículas
de tempestade.
Titia morreu.
Logo em seguida sua irmã.
Foi então que entendi a queda
copiosa das águas.
Desde esse dia
carrego comigo a
impressão de que as tempestades,
assim como as lágrimas,
são prenúncios de voo.
Engano
Por cima da mesa,
minha avó regava
com seus olhos
as flores de plástico.
Fizesse sol ou chuva,
adormeciam intactas, na mesma posição.
Embora soubesse que as flores,
assim como as fotografias,
permaneciam novas hipoteticamente,
desejava também um coração de plástico.
Às visitas, entre o belo
espanto pelas tristes flores
e uma xícara de chá,
despertava na voz a certidão:
— estão aí para enganar a morte.
Angel Cabeza nasceu no Rio de Janeiro. Poeta e cronista, cursou Letras, Jornalismo e atua no mercado editorial como coordenador, produtor gráfico e projetista. Publicou Sempre existe um último momento (crônicas, RJ, 2011) e Vidro de guardados (poemas, RJ, 2010). Integra as antologias Os melhores poemas de 2016 (ZL Editora, RJ, 2017, edição bilíngue), O Casulo (Patuá, SP, 2017), 29 de abril, o verso da violência (Patuá, SP, 2015), Escritores da Língua Portuguesa, Volume I (ZL Editora, RJ, 2012), Qasaêd lla falastin — Poemas para a Palestina (Patuá, SP, 2013) e Geração em 140 caracteres (Geração Editorial, SP, 2012). Possui textos publicados em diversas revistas, entre elas Odara (UFRJ), Vício Velho, Gueto, Germina, Zunái, Subversa, Eutomia, Cronópios, Cuarto Propio (Universidade de Porto Rico), Verso Destierro (México) e Generación Espontánea (Madri).
Seu novo livro de poemas, Canção para os seus olhos e outros castanhos, sairá em breve pela editora Urutau.
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