Homo homini lúpus
Plauto
É o tema que me deram
quando fiz o exame
de admissão para a vida.
Eugenio Montale
por Patricia Porto
Quantos instantes cabem num ponteiro? Quantos lobos cabem num só nome? Não à toa, A Perpetuação da Espécie, de Fernando Andrade, começa com uma epígrafe de João Gilberto Noll, retirada do livro A Fúria do Corpo, que diz “O meu nome não. Nem meu passado, não queira me saber até aqui digamos que tudo começa neste instante.”
Com maestria, Fernando Andrade cria poemas em quem tudo começa “neste instante”. Tanto que os dois primeiros versos do texto de abertura dizem “E se sua mãe e seu pai/Fossem a dor do seu parto.” Fernando é a tríade deste livro: pai, mãe, filho – mas seria o livro a dor da gênese? Não darei a reposta, porque o próprio autor não dá, mas permite que sintamos as contrações da espécie trazidas por trechos como “Parte da louça/virou vidraça” (poema 21), “nunca nos movemos/De uma morte (Gênero)” ou “Você que ontem/Me perguntou/Qual é seu nome?/Não está vendo?”
Mas se A Perpetuação da Espécie é nascimento a partir “deste instante”, nos cabe perguntar: que ser é este? Ele é um ser composto por Nascimento, Infância, Lembranças, Imagens e Gênero – as cinco partes em que a obra de divide. Ou melhor: se integra. Porque o livro de Fernando Andrade é um ser complexo, vivo e uno, vivendo/dizendo/contorcendo-se no aqui e agora. Mesmo ao usar construções, tons e nuances que parecem ser do passado, o autor só as traz para rearrumar o presente efêmero e fugaz. O lobo ajusta o ponteiro das horas com vários nomes.
Mas, por favor, não imaginem que o poeta tem um contrato com o passado ou algo assim. Nem de longe. Este é um livro escrito com a coragem dos que sobrevivem ao próprio lobo, com a distância estética e a proximidade emocional que se exige dos poetas – estes seres que estão, ao mesmo tempo, perto e longe de sua matéria, de seu “tema”.
Fernando Andrade, feito flâneur, passeia por vários estilos poéticos, e vai da rima irônica ao quase dadaísmo que surge no fim do poema 31. Por que Fernando faz isso? Em primeiro lugar porque pode. Seu conhecimento da arte literária permite isso. Em segundo lugar, porque uma espécie precisa se adaptar. E Fernando Andrade emprega seu talento e sua voz às mais diversas estéticas, buscando terrenos movediços, escapando das armadilhas próprias dos intercâmbios poéticos por um propósito: enredar-se. E inventa seu roteiro à sua semelhança e dissemelhança em palimpsestos. Por isso gosto das imagens visuais que acompanham o livro, riscos e rabiscos, canetas que pousam sobre papéis, paredes, telas, novos pergaminhos, caminhos, novas possibilidades de ser.
Homem-sapiens-riscos desde à primeira tentativa simbólica de linguagem e registro da sua passagem pelo mundo até formar-se um elo, eu-com-outro, menino do homem, menos lobo de si, acompanhado no que se contempla ou se projeta como completude, concretude – e inteiro. Quem riscou esta nossa parede com sangue, corpo e história?
Nesta obra que se debruça sobre o ser-do-ser e se desloca para não ser o lobo-do-ser, lobo-do-ser, o poeta à espreita de si, ao colocar no mundo rebento tão desafiador, acaba por me fazer catar na estante um Maiakoviski, que ouço e respiro, copiando exatamente naquilo que sinto ao ler A Perpetuação da Espécie: “A poesia/-toda-/é uma viagem ao desconhecido”. Perpetuada aqui está.
PATRÍCIA PORTO – Maranhense, Doutora em Políticas públicas e educação, formada em literatura, publicou a obra acadêmica, Narrativas memorial’sticas: por uma arte docente na escolarização da literatura. ( indicada ao prêmio Capes). E os livros Sobre Pétalas e preces, Diário de viagem para um espantalho e andarilhos, e cabeça de Antígona (editora Reformatório). Participou ainda de coletâneas no Brasil e no exterior. Atualmente é pesquisadora do projeto Portinari.
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