Fernando Andrade entrevista a poeta Wanda Monteiro

 

FERNANDO ANDRADE A escrita seria uma rememoração do tempo? Falamos a todo momento. Partícula Wait (momento), Ação do tempo, obra humana. Aguardamos o quê com este tempo, contamos ele no bolso? Fora dos livros. Este não é o tempo da poesia?

WANDA MONTEIRO – A escrita, certamente é uma rememoração do tempo.
A escrita não apenas rememora o tempo como também pode engendrar /inventar outro tempo – o futuro – o quase agora. Porque para o humano, a vida é um tudo de lembrança e espera. Penso que o humano, no seu estágio evolutivo, não pode reter isso que você chama de partícula wait, porque quando o ser humano consegue apreender e reter o presente, este já é passado, de acordo com o tempo gravitacional dessa esfera que chamamos de Terra.

Sobre a escrita poética, devo dizer que a poesia não comporta as convenções calendárias e cronológicas do tempo, quem dá conta desse tempo que mensura o dia e a noite e demarca a existência dos entes e da coisas, é o escritor ou a escritora no seu fazer poético. Esse é o tempo que vigora fora dos livros. E certamente, esse tempo convencional não é o tempo da poesia.
Você diz que no meu livro não há esta nítida divisão do tempo. É exatamente isso. Se houvesse eu trairia a natureza da poesia. A Liturgia do Tempo e outros silêncios é um livro de poemas e como eu já disse, a poesia subverte esse tempo que o ser humano tenta mensurar, codificar, demarcar, classificar.

 

FERNANDO ANDRADE – A cidade afoga os mitos, as fábulas, o cordão dos cordéis. A poesia virou escala industrial? O poema cooperativa, grupos falam bem entre si. Mas esquecemos do homem-mato, do homem-terra-solo. Seu livro me dá a sensação deste homem mais tranquilo sobre as da poesia-natureza. Fale disso.

WANDA MONTEIRO – Sobre a poesia virar escala industrial devo dizer que se virar deixa de ser poesia pois o componente natural do fazer poético é a subjetividade. Não compreendo o que você quer dizer com poema cooperativa mas se tem alguma coisa ver com o diálogo, a troca e a interface de grupos de poetas com seus mais variados estilos e estéticas, eu considero essa conexão extremamente válida e positiva. Mas insisto em dizer que o resultado desse fazer poético sempre terá um componente essencialmente subjetivo ainda que isso resulte de um consciente coletivo.

Sobre o homem-mato, homem-terra-solo…
Primeiro vamos trocar a palavra homem pelo ser humano, assim as mulheres não ficam de fora. Bem, a vida cosmopolita, sobretudo nas grandes metrópoles, logrou ao esquecimento esse ser humano. O ser humano, quando perde sua conexão com a natureza e com sua ancestralidade, esquece de sua condição primeira que é de fazer parte física e orgânica da Terra e por essa razão, não está nem acima nem abaixo da natureza. O ser humano é a própria natureza.
Sobre minha poesia estar mais próxima desse ser humano ligado e conectado à natureza, este é um estado inevitável pois eu sou uma ribeirinha. Nasci dentro do rio Amazonas, numa cidade à sua margem esquerda chamada Alenquer, no Estado do Pará. Essa cidade fica no coração da floresta amazônica, portanto fui criada com base nas relações intimas e intrincadas que toda a gente daquela pequena cidade tinha com a mata, sua flora, seus animais e com rio. Uma vida de gente ribeira é regida pelo fluxo das águas dos rios, dos igarapés. Para nós, os ribeirinhos, a chuva é um rio suspenso no ar.

Voltando as questões da primeira pergunta. Sobre a ação do tempo, obra humana, contar o tempo no bolso, o afogar dos mitos, etecétera. Permita-me dizer alguma coisa sobre como a ideia de tempo o seu começo e como a artes inferem nisso tudo.
Toda a ideia de existência, e com ela, a ideia de tempo, foi concebida textualmente sob o postulado de uma singularidade, ou seja, a ideia de um começo do tempo e no tempo. É sob esse postulado que reside o conceito de criação.
Mesmo no campo da ciência, a mente humana não comporta significados ligados a uma existência sem origem. Neste século, ainda, estamos diante de perguntas sem respostas. Continuamos condicionados aos significados ligados às origens – ao começo da existência e, portanto, ao começo do tempo. Porquanto a ideia de tempo é humana e procede à ideia de existência. As civilizações não possuem histórias de uma criação contínua – qual seja – de uma eternidade indiferenciada ou uma existência que prescinda de inicio e fim. Diante da ausência de respostas, as religiões nasceram com os seus mitos da criação. Para elas, o deus ou os deuses são o começo de tudo. Esta é a resposta narrativa das religiões à pergunta sobre a qual os filósofos dissertaram e ainda dissertam de forma exaustiva – a pergunta é : “ por que o nada não existe?”

Na filosofia grega primitiva, Parmênides celebrava o apogeu da razão e da lógica o que tornara impossível conceber o nada. Mas esse paradigma caiu, e depois, grande parte do arcabouço teórico da Filosofia que, em seus princípios guardou a narração ontológica no propósito de descrever as origens do ser, aborda esse espectro da negação sobre o tempo, sobre a história, o sentido dela e sobre a necessidade humana de criar alegorias, mitos, deuses e orixás para a sustentação dessa fala. Essa é base da premissa de que o mito é a própria fala. Mas embora tenhamos o esteio das crenças e um cais repleto de alegorias com seus deuses, mitos e orixás, ainda assim, eles não resolvem a inquietude do ser humano que está sempre em busca de seus objetos de negação.
Platão, Kant, Bérgson e Santo Agostinho – só para citar alguns de tantos filósofos, todos dissertaram longamente sobre as coisas primeiras. Hegel sustentava que “o começo não é um puro nada, mas, um não ser” e que “ a partir do qual o ser surgirá”. Para Heidegger “o nada nunca é nada”.Mas os vácuos textuais da historia da humanidade são muitos. E, no agora desse tempo, a humanidade quer saber : o quê dá vida à vida ? e quando ?

Ainda há muitos silêncios. As artes surgiram para preencher as lacunas da realidade mediata com seus vazios textuais e seus silêncios com a re-criação – com a re-presentação.
Assim como na filosofia, há na Poesia uma fascinação metafísica pela criação – pelo começo de tudo. Essa fala transcende às convenções calendárias e cronológicas sobre o tempo.
Então, falar, poeticamente, sobre o tempo é falar no campo da metafísica.

 

FERNANDO ANDRADE – Você demarca o subtexto como leito do rio. Onde se passam as correntes (literárias) ? Mas, talvez, não podemos vê-las pela coloração das águas. Fale um pouco desta relação de leito de rio com os silêncios do poema.

WANDA MONTEIRO – Para falar das correntes, da coloração das águas, da relação do leito do rio com os silêncios do poema, e dessa demarcação do subtexto como leito do rio, eu prefiro recorrer às impressões de alguns escritores, poetas e críticos que leram alguns de meus livros e que escreveram sobre o livro A Liturgia do Tempo e outros Silêncios. Um deles é o escritor e professor Demetrios Galvão que sobre isso, escreve:

Na poesia de Wanda Monteiro o tempo tem muitos afluentes. Tempo-líquido que excede as banalidades das horas, dos calendários e a concepção linear de passado, presente, futuro. O tempo se torna pensamento e se dilata em suas incontáveis dobras. A poeta cria percursos líquidos na corrente da memória. O rememorar ganha dimensão criadora, em um salão de silêncios, entre os pedregulhos do passado. Uma luta contra as sobras, as sombras que nos apavoram.

Outro olhar certeiro e revelador é o da escritora Lazara Papandrea que, no seu dizer poético, escrever:

“…
a palavra poética de Wanda Monteiro é um rio que milagra. É flor que o rio lava, flor que o rio (en)leva, flor que rio (en)lama.


O rio como verbo. O rio como corpo do verbo-tempo. O tempo como verbo do corpo-rio.


A poeta corporifica a fluidez, contorna o movimento, como se da chuva, sobre um rio de palavras, adentre o verbo para conduzi-lo ao silêncio que a tudo enlaça e tudo vê. Para ela, o tempo é “chão itinerante” a mover-se caudaloso num rio de memórias.”

 

FERNANDO ANDRADE – Tua linguagem me acionou um sentimento do miraculoso, e também ligado ao sentido coletivo-tribal. Desafetando a rotação do único-individual, da pressa do ego. Pelo senso líquido desta sua linguagem poética ser dos rios, das fontes, foz/voz. Fale um pouco desta relação água/cancioneira.

WANDA MONTEIRO – Interessante você dizer isto sobre o sentimento do miraculoso porque a
escritora Patrícia Porto teve esse mesmo afeto ao ler meu livro e escreveu em sua resenha:

“…
Devo destacar é que a leitura de A Liturgia do Tempo deveria ser feita como se a obra fosse um romance. Sugiro que os poemas sejam lidos em sequência e, de preferência, de uma vez só, respeitando os diálogos presentes e seus respiros. Só assim alcançamos o efeito do ato litúrgico, do Religare que a autora proporciona. Pois neste livro, Wanda Monteiro não é uma escritora apenas. É também uma celebrante, que parece encarnar uma tríade _ poeta, prosadora e milagreira.

Sobre o meu fazer poético nesse livro, além de minha íntima relação cancioneira com as águas e com a voz líquida desse tempo escrito na metáfora do rio, o que mais me provocou inquietação foi o insólito da realidade ou a ilusão que temos dela.
O que temos e o que podemos reter – apreender da realidade – são apenas espectros temporais e espaciais de uma aparente realidade imediata tridimensional. Para o humano, a realidade é feita de sentidos, vivê-la é um processo mental. O cotidiano, sua pesada uniformidade, o tédio de sua rotina, tudo isso martela minha consciência e me provoca. Sou atraída pelo incomum, pelo extraordinário de uma supra-realidade. É essa amorgrafia o meu barro para modelar a palavra poética.
Sobre isso, a escritora e crítica literária Alexandra Vieira de Almeida fala com muita propriedade em sua resenha desse livro, publicada na revista literária portuguesa In Comunidade, quando escreve:


o tempo, para Wanda Monteiro, nesse novo livro de poemas, se coloca como pergunta filosófica que só a sabedoria do indizível da poesia pode explicar. A poesia é capaz de preencher de corpo essa questão tão silenciosa de sentidos que desafia nossos limites mais constantes.
…”

No mais, esse livro meu, que foi premiado com um precioso texto de posfácio do poeta Nuno Rau e a edição primorosa da editora Patuá do editor Eduardo Lacerda, diz muito de um Eu lírico inquieto e prenhe de dúvidas. Mas esse livro não trata apenas do tempo concebido no campo metafísico. Ele trata de outros silêncios – cujo tempo gravitacional e terreno interfere – quando fala da morte, do envelhecimento, dos esquecimentos, das ausências, das impermanências. E trata de silêncios devastadores como a fome, o abandono, a desistência da vida, a hipnose letal de milhares de seres humanos rendidos e presos em suas esferas de alienação e sua indiferença para com a natureza orgânica do planeta que habitam.
E ele diz de mim, desse meu desassossego, de para além da subjetividades perdidas, saber da vida o seu deslimite.
E pra dizer mais de minha cancioneira relação com as águas eu devo ressaltar:
Mesmo que eu não escreva sobre as águas e/ou sobre os temas ligados à natureza, ainda assim, esse elo entranhado de memórias estará sempre nos silêncios do texto e no entreato da escrita.
Em algum lugar dessa escrita, sempre estará a menina que nadava com os botos, que aprendeu a sentir o cheiro da chuva, que escutava a voz da mata, que flutuava na poeira das estrelas e ficava sentada, na beira do rio, vendo o rio correr, tentando entender seus fluxos, e decifrar os seus caminhos.
Só nesse meu outono, onde vivo a maturidade nos ossos das palavras, pude constatar que as raízes da consciência são fincadas na quimera da infância.

 

 

 

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This Article Has 2 Comments
  1. Antonio Juraci Siqueira Reply

    À melhor aula sopre o maior é mais complexo mistério do mundo: o Tempo. Grato, Poeta,! Quem sai aos seus, não degenera!

  2. Lourença Lou Reply

    Excelente entrevista. Wanda Monteiro é um enacanto. Parabéns a todos os envolvidos.

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