FERNANDO ANDRADE – No romance biográfico você já tem uma visão do que a narrativa está trilhando. Percorre as sendas do factual, do verossimilhante. Neste seu romance como foi colocar um vidente como uma espécie de Tirésias? Onde ele antecipa o próprio cerne narrativo: um jogo de espelhos entre ficção e realidade.
BRUNA MENEGUETTI – É engraçado, porque sinto que tive mais facilidade na “visão que a narrativa está trilhando” neste meu segundo romance, por já saber o que iria acontecer na história oficial do Brasil. A pergunta não era: “que coisas ocorreram?”, e sim: “de que forma as coisas ocorreram?”. Foi tentando responder a esse questionamento que pude inventar diálogos, relações, personagens e ações supostamente ocultados pela historiografia.
Ao pensar nessa ligação que o enredo teria com a história brasileira, decidi que o dom do vidente cego Isaías Monteiro seria factível com a realidade. Por exemplo, quando ele vai tentar provar para JK que realmente pode ajudá-lo, Isaías começa a prever detalhes curiosos e reais sobre o então presidente eleito, como o fato de sua fruta predileta ser a jabuticaba e de Juscelino ter tido um problema no dedo do pé direito, o que faz com que, muitas vezes, tire os sapatos durante eventos de forma discreta.
Porém, mesmo nos momentos em que há invenção na narrativa, tento fazer com que haja verossimilhança; JK não contratou um vidente cego naquele momento, mas é verdade que se consultava com Chico Xavier. Ou seja, é possível — embora não seja um fato — que Juscelino tivesse concordado com a ajuda de um vidente. O intuito era fazer o leitor pensar: será que o que está escrito no livro é uma alternativa possível para o desenrolar interior desses episódios? Eu espero que sim, mas as pessoas não podem deixar de se questionar isso.
Agora, sobre Isaías antecipar o cerne narrativo: há um leitor que teorizou sobre o personagem achar que prevê o futuro, mas apenas ser capaz de ler mentes. É uma leitura possível. De qualquer forma, a antecipação faz com que cada um dos personagens tome atitudes de acordo com suas personalidades. Há uma grande tentativa de manipulação, mas o destino, arbitrariedades e decisões pessoais escorrem pelos dedos de Isaías de modo que, por mais variadas que sejam as ações de cada um, toda elas desencadeiam na resolução do conflito como de fato ocorreu na história brasileira.
Na verdade, creio que a grande capacidade de Isaías não é prever, mas confundir o leitor. A todo o momento, ele tenta entender o que está acontecendo e tropeça nas próprias previsões. Sua cegueira extrapola os limites corporais, percorrendo o seu dom mental. É uma pessoa que, por enxergar muito, pode não ver nada. Veja que ele é uma crítica aos comportamentos notáveis em muitos de nós: alienados em relação às decisões acerca de nosso país e bombardeados por uma infinidade de informações que, muitas vezes, nos deixam cegos diante dos principais problemas e respostas.
FERNANDO ANDRADE – A relação de Cecília e Isaías de certa forma motiva e impulsiona a trama. Como foi jogá-los numa espiral política onde os eventos são neles tragados e por eles inflados. Qual relação de casualidade entre o amor e fatos históricos e políticos?
BRUNA MENEGUETTI – Desde o começo, pensei o livro para que o episódio do último tiro disparado na Baía de Guanabara até os dias atuais fosse contado do ponto de vista de pessoas anônimas. A relação entre um cego e uma simples camareira influenciando um dos momentos marcantes da história do Brasil era algo que me interessava. Ficava pensando: e se pessoas comuns, de certo modo marginalizadas, tivessem o controle dos acontecimentos? É aquela frase famosa da Octavia Butler: “Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco”.
Nesse sentido, queria que Cecília fosse o oposto de Isaías: bem informada, politizada, com capacidade para tomar decisões que ajudariam o Brasil naquele momento. Foi uma forma de colocá-la em contraste com aqueles diversos homens que estavam tomando as rédeas do governo, ou tentando tomar.
Cecília é uma mulher que sabe o que faz e onde quer chegar, mas não tem os meios para isso. Quando Isaías a encontra, vira uma espécie de “ferramenta” para ela. É a chance que Ceci tem de fazer algo efetivo, mas não que isso a torne fria em relação a ele. Ela apenas tem medo de se aproximar, porque entende o que significaria a convivência diária com alguém capaz de ler os pensamentos e ver o seu futuro. O que Cecília deseja é a libertação e, de certa forma, Isaías a prende quando usa seus dons com ela.
Por outro lado, ele não se importa com o que está acontecendo no Brasil. Vê uma nuvem de morte pairando sobre a sua amiga de infância e a única coisa que deseja é ajudá-la, mas Isaías se envolve cada vez mais na política e percebe como não pode estar alheio.
Enquanto isso, um episódio traumático faz Cecília reivindicar o seu espaço, o seu destino. Acho que ambos aprendem com as circunstâncias e só aí conseguem se movimentar para a resolução dos acontecimentos, assim como para o amor.
FERNANDO ANDRADE – A trama renderia um bom filme, embora haja um plot central, a discursividade narrativa é bem visual. Como a pesquisa histórica a influenciou no andamento ou “onda” da narrativa? Como foi manejá-los para se ter um bom fluxo de cenas e imagens?
BRUNA MENEGUETTI – Grande parte da história se passa ao redor de quatro dias, que foram cruciais para a tentativa de golpe e o contragolpe de 11 de novembro. Então, o roteiro estava pronto. Eu sabia os dias em que cada ação havia ocorrido e como tudo terminava. Li diversos livros sobre a época, antes dela e depois. Dois que gosto de citar são: Forças Armadas e Democracia no Brasil: O 11 de novembro de 1955, de Karla Carloni — ele me situou muito bem sobre os problemas e intenções políticas da época — e Radiografia de Novembro, de Munhoz da Rocha — o autor era ministro da agricultura e estava contra JK. A leitura foi especialmente importante, porque me mostrou o ponto de vista de quem articulava o golpe, mas também pelo fato de Munhoz narrar os eventos hora a hora, algo que também fiz no meu livro: as cenas são separadas nos períodos da manhã, tarde, noite e madrugada.
No final da obra, optei por colocar uma espécie de “bibliografia”. São referências de leituras para quem deseja entender mais sobre a época, onde começar a pesquisar e descobrir o que ali é real e o que não é. Essa imersão grande, de uns bons anos de pesquisa, fez com que eu deixasse os fatos me guiarem pelo fio narrativo da ficção. Para não ficar um relato chato ou extremamente parecido com a historiografia, criei diversos personagens.
A maior parte dos personagens que não existiram na história real e estão no meu livro são mulheres. Dessa forma, são elas que movimentam a história, caso contrário O último tiro seria um livro de reuniões políticas burocráticas entre homens. Quis fazer diferente, que elas desenvolvessem um papel fundamental no desenrolar dos acontecimentos e também que pessoas vistas como invisíveis pela sociedade tivessem o seu papel: motoristas, camareiras, marujos, cozinheiras, todos têm a sua ação e acredito que deixam a história mais interessante, porque ela nunca é contada sob o ponto de vista dessas pessoas.
Simone de Beauvoir diz em seu livro O segundo sexo: “A alienação das mulheres não é biológica, mas cultural. Não é a inferioridade das mulheres que determinou sua insignificância histórica. É a sua insignificância histórica que as tornou inferiores”. Trazer as mulheres e os personagens invisíveis para a minha história é uma forma de reparo e também um alerta: se antes não podíamos e não tínhamos meios, como Cecília, hoje podemos conseguir mais, apesar de todas as travas que ainda tentam nos deter.
FERNANDO ANDRADE – Interessante o teu uso da palavra nuvem para descrever o antecipar dos fatos, o vislumbre do futuro. Pois, a palavra tem uma junção e conotação muito poética, há nela uma polissemia muito bonita dando tons e coloridos metafóricos aos enredos. Fale disso.
BRUNA MENEGUETTI – O vidente cego vê cores e símbolos saindo da superfície de tudo o que é vivo (quanto mais complexo o ser vivo, mais padrões e símbolos existem). Nos seres humanos, as cores e símbolos sobem para uma nuvem no topo da cabeça, que simboliza o futuro. Dessa forma, para o leitor, a cegueira torna-se colorida, vibracional, apenas uma outra forma de enxergar o mundo. Também imaginei se parte desses pensamentos subissem para uma nuvem maior, que estaria pairando em cima de uma cidade, um país inteiro.
Essas mesmas nuvens causam um embate durante todo o livro. Na narrativa, são as ações, pensamentos e sentimentos dos personagens que fazem o futuro deles se alterar. Ou seja, conforme as pessoas mudam a forma como agem e pensam, essa mesma nuvem é modificada e “chove” situações diferentes. Mas será que existe um ponto em que não mais é possível voltar atrás na profetização desse destino criado? Aliás, será que somos mesmo responsáveis por tudo o que nos acontece? Como o livre arbítrio e as situações que não estão dentro de nosso controle podem afetar as nossas vidas? Isaías se depara com todas essas perguntas, porém não há tempo para a reflexão, o presente exige uma resposta imediata. Cabe ao leitor tentar respondê-las.
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