1999.
O diretor Elia Kazan é convidado ao palco
Por Martin Scorcese e Robert de Niro
Para receber o Oscar honorário
Pelo conjunto de sua obra.
Você, membro da Academia,
Cruza os braços para o criador
De Sindicato de Ladrões e Um Bonde Chamado Desejo
Ou aplaude de pé
O delator do Macartismo?
1991.
O filho mais velho de Marlon Brando
É preso e julgado por assassinato.
Marlon é chamado a testemunhar,
Emociona-se, chora em sua defesa.
Você, membro do juri,
Ignora as lágrimas de um pai
Ou acredita no maior ator do mundo?
***
Acho que nunca vi a Rua Castro Alves sem carros.
É um bocado movimentada,
Onde o 623 dá a volta
Antes de passar no Norte Shopping.
Tinha uma biblioteca pública
Chamada Lima Barreto,
Que viveu não muito longe dali.
Nela li a prestações a Estrela de Vida Inteira,
Do Manuel Bandeira.
Depois a prefeitura acabou com a biblioteca
Sem dar satisfação a ninguém,
Mas ninguém reclamou.
O pessoal do Méier é muito desunido.
Minha mãe morou na Rua Castro Alves mocinha,
Com minha avó e a Tia Rosa.
Imagino que naquela época o tráfego era menor.
Se não me engano, o bonde passava ali.
Minha mãe contava do árabe
Que vinha de mês em mês fazer não sei mais o que
E uma vez, ela ainda menina,
Ao vê-lo na porta saiu gritando:
“É o turco! É o careca! É o turco! É o careca!”
Matando a mãe e a tia de vergonha.
Ou da Tia Rosa, que quando tomava vinho licoroso
Ficava com a cara vermelha e ria, ria, ria, ria,
E minha mãe ao contar isto
Ficava vermelha também e ria, ria, ria, ria.
E às vezes, no fim da tarde ou começo da noite,
Por acaso minha mãe chegava à janela da sala,
Que dava para a rua,
Que naquele momento estava estranhamente deserta,
Mesmo para uma época de menos carros,
E então avistava um cavalo branco
Sem sela nem cavaleiro,
Vindo no começo da Rua Castro Alves.
O cavalo vinha a toda a brida
Galopando desabalado,
Passava em frente da casa
E desaparecia esquinas adiante.
E quando isto acontecia
Minha mãe sabia
Que alguém da família ia morrer.
Nunca falhou.
Não lembro quem foram as pessoas,
Mas era em menos de uma semana,
Às vezes no dia seguinte.
Aconteceu quatro ou cinco vezes,
Mas ela não ficava desesperada.
Era antes uma serenidade,
Como próxima do encantamento.
Dias depois chegava a notícia,
E acho que ela só contou a relação
Entre suas visões e as mortes
Anos mais tarde.
Hoje há carros demais na Rua Castro Alves,
E bondes e cavalos de menos,
As lembranças de minha mãe
Vão se apagando na minha memoria
E ela, leitora ávida de romances baratos,
Nunca desconfiou que passou parte da juventude
Dentro de uma história de realismo fantástico.
***
O homem foi assassinado pela polícia,
Que confundiu sua furadeira
Com uma arma.
O homem foi assassinado pela polícia,
Que confundiu seu taco de sinuca
Com uma arma.
O homem foi assassinado pela polícia,
Que confundiu seu guarda-chuva
Com uma arma.
Mais armas, mais armas!
Clamam os homens de bem.
Às armas, cidadãos,
Formem seus batalhões!
A mim, que não sou de bem,
Contentaria obter
A liberação do porte
A toda a população
De furadeiras,
Tacos de sinuca,
Guarda-chuvas.
Túlio Ceci Villaça é publicitário formado pela UFRJ em 1992. Estudou também arranjo e MPB na Escola de Música Villa-Lobos e UNI-RIO. Atuou como músico e ator, arte-educador, regente de corais e hoje mantém um blog de crítica musical chamado Sobre a Canção, e publica eventualmente em revistas da área. Escreve poesia há quase 30 anos e tem dois livros publicados: Antifonária, na internet, em 2009, e Logopeia, em 2016.
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