Poemas do livro Como num naufrágio interior morremos, Editora Urutau 2019
IV
Para Victor Oliveira Mateus
Caminho como uma fogueira no tempo.
Estão longe os dias
que pronunciavam o Louvre.
Tudo respira entre dois hemisférios:
um repleto de harpas e cotovias,
o outro,
hirto de mandíbulas e agónicas ficções.
O corpo,
antigo prado vigiado pela neve.
Cultivámos o aroma da máscara
e a sensualidade está agora
ligada ao ventilador.
A minha mãe
que orava a Cesariny,
repetia a
Pena Capital.
Dorme meu filho
o amor
será
uma arma esquecida
um pano qualquer como um lenço
sobre o gelo das ruas
Abolimos a leveza
de encostar os lábios
e a nebulosa taquicardia
não deixa que a vertigem recite:
o teu corpo é o Guggenheim.
De súbito,
Agosto inala tumulto.
Não entendemos
porque a Aurora Boreal
não continua a girar
à volta do nosso ego.
Como traduzir o Outono
onde a queda é definitiva?
O homem será sempre a partitura de um pântano.
VIII
O corpo,
canora ave
na puberdade das falésias.
Ainda sem o infinito
adornado para o junco,
a pele,
condomínio de fábulas.
Mais tarde,
o ciclo menstrual da erosão.
O povo,
negra pintura de Goya
no entardecer da idade.
Prometeram-lhes que os olhos
seriam em todas as horas
pinturas de Matisse
e o futuro usaria brinco de pérola
como as raparigas de Vermeer.
Mas o que temos
é musgo no desfiladeiro das veias.
Ficaram para trás as mães
remendando fantasmas na trincheira.
Estas já não dizem,
Agosto é o epicentro de uma tela de Pollock
e a infância foi criada por um vulcão
nos pincéis de Miró.
Fossem os precipícios
um verso de Quintana
e todos gostaríamos de venerar
a arte do alagamento.
Quem faz um poema salva um afogado.
Na inundação,
o povo escreve seda mais pura.
X
As mães,
a mais alta fisionomia celeste.
O útero,
plataforma sagrada
minando as células de girassóis.
Depois o mundo.
A linguagem inaugural da garganta,
sísmico fôlego
abrindo as janelas às pálpebras.
Distante,
ainda com a ignição flácida,
a puberdade das falésias.
O tempo,
recital de fábulas
na exultante corrida do sangue.
Sem receio da queda,
sílabas íngremes.
Acordei tarde para o crude.
Os homens,
nebuloso solfejo
nos tendões do poema.
Infligimos rudes golpes em tudo.
Morremos sempre
com uma faca a farejar a Primavera.
Alberto Pereira é um escritor português. Nasceu em Lisboa. É membro do PEN Clube.
Publicou os livros: O áspero hálito do amanhã (2008), Amanhecem nas rugas precipícios (2011), Poemas com Alzheimer (2013), O Deus que matava poemas (2015), Biografia das primeiras coisas (2016), Viagem à demência dos pássaros e Bairro de Lata (2017), Como num naufrágio interior morremos (2019).
Alguns dos seus poemas foram traduzidos para espanhol e francês.
Obteve os seguintes prémios literários: 1º Prémio do Concurso de Poesia, “Ora, vejamos” (2008); 1º Prémio no Concurso de Poesia da ACAT (2009); 3ºlugar no Prémio Sepé Tiaraju de Poesia Ibero-Americana, entre 3027 obras inscritas de 26 países (2009); 1º Prémio do Concurso de Conto “Ora, vejamos” (2009); 1º Prémio do Concurso Literário Conto por Conto (2011); 1º Prémio no XIV Concurso de Poesia Agostinho Gomes (2013); 1º Prémio no Concurso Literário Manuel António Pina, Museu Nacional da Imprensa (2013); Menção Honrosa no Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant´Anna (2018).
Parabéns!
Queiramos ou não, os escritores portugueses são bons.