“Tudo respira entre dois hemisférios” – Três poemas de Alberto Pereira

 

 

Poemas do livro Como num naufrágio interior morremos, Editora Urutau 2019

 

IV

Para Victor Oliveira Mateus

Caminho como uma fogueira no tempo.

Estão longe os dias
que pronunciavam o Louvre.
Tudo respira entre dois hemisférios:
um repleto de harpas e cotovias,
o outro,
hirto de mandíbulas e agónicas ficções.

O corpo,
antigo prado vigiado pela neve.

Cultivámos o aroma da máscara
e a sensualidade está agora
ligada ao ventilador.

A minha mãe
que orava a Cesariny,
repetia a
Pena Capital.

Dorme meu filho
o amor
será
uma arma esquecida
um pano qualquer como um lenço
sobre o gelo das ruas

Abolimos a leveza
de encostar os lábios
e a nebulosa taquicardia
não deixa que a vertigem recite:
o teu corpo é o Guggenheim.

De súbito,
Agosto inala tumulto.

Não entendemos
porque a Aurora Boreal
não continua a girar
à volta do nosso ego.

Como traduzir o Outono
onde a queda é definitiva?

O homem será sempre a partitura de um pântano.

 

 

VIII

O corpo,
canora ave
na puberdade das falésias.

Ainda sem o infinito
adornado para o junco,
a pele,
condomínio de fábulas.

Mais tarde,
o ciclo menstrual da erosão.

O povo,
negra pintura de Goya
no entardecer da idade.

Prometeram-lhes que os olhos
seriam em todas as horas
pinturas de Matisse
e o futuro usaria brinco de pérola
como as raparigas de Vermeer.
Mas o que temos
é musgo no desfiladeiro das veias.

Ficaram para trás as mães
remendando fantasmas na trincheira.
Estas já não dizem,
Agosto é o epicentro de uma tela de Pollock
e a infância foi criada por um vulcão
nos pincéis de Miró.

Fossem os precipícios
um verso de Quintana
e todos gostaríamos de venerar
a arte do alagamento.

Quem faz um poema salva um afogado.

Na inundação,
o povo escreve seda mais pura.

 

 

X

As mães,
a mais alta fisionomia celeste.

O útero,
plataforma sagrada
minando as células de girassóis.

Depois o mundo.

A linguagem inaugural da garganta,
sísmico fôlego
abrindo as janelas às pálpebras.

Distante,
ainda com a ignição flácida,
a puberdade das falésias.

O tempo,
recital de fábulas
na exultante corrida do sangue.
Sem receio da queda,
sílabas íngremes.

Acordei tarde para o crude.

Os homens,
nebuloso solfejo
nos tendões do poema.

Infligimos rudes golpes em tudo.

Morremos sempre
com uma faca a farejar a Primavera.

 

Alberto Pereira é um escritor português. Nasceu em Lisboa. É membro do PEN Clube.
Publicou os livros: O áspero hálito do amanhã (2008), Amanhecem nas rugas precipícios (2011), Poemas com Alzheimer (2013), O Deus que matava poemas (2015), Biografia das primeiras coisas (2016), Viagem à demência dos pássaros e Bairro de Lata (2017), Como num naufrágio interior morremos (2019).
Alguns dos seus poemas foram traduzidos para espanhol e francês.
Obteve os seguintes prémios literários: 1º Prémio do Concurso de Poesia, “Ora, vejamos” (2008); 1º Prémio no Concurso de Poesia da ACAT (2009); 3ºlugar no Prémio Sepé Tiaraju de Poesia Ibero-Americana, entre 3027 obras inscritas de 26 países (2009); 1º Prémio do Concurso de Conto “Ora, vejamos” (2009); 1º Prémio do Concurso Literário Conto por Conto (2011); 1º Prémio no XIV Concurso de Poesia Agostinho Gomes (2013); 1º Prémio no Concurso Literário Manuel António Pina, Museu Nacional da Imprensa (2013); Menção Honrosa no Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant´Anna (2018).

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This Article Has 2 Comments
  1. Roberto Monteiro Reply

    Queiramos ou não, os escritores portugueses são bons.

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