“teu chamado mudará a rota das formigas” – Três poemas de Ithalo Furtado

 

 

leia como se gritasse

leia como se gritasse e quando te entupirem as veias com as substâncias
tóxicas provenientes do rancor e do cigarro se jogue num sofá velho, recupere o ar
e berre como se morresse, o direito ao urro deve ser concedido a todo cidadão
revoltado com seu ponto
com seu ônibus
com seu sexo
com seu deus
é tudo pago e nada presta

as fábricas não vão cessar
a máquina não vai cessar
não vão cessar a produção de frango o cinema iraniano moderno
nem o pai de família vociferando mentiras na ponta da mesa enquanto cospe
pedaços de bife no silêncio dos pratos
& sob a pele do medo
a violenta tatuagem anuncia a chegada
de outra pele
à frágil indumentária
nenhuma compaixão

mas chegará a noite no pequeno quarto e
trancafiado três aluguéis atrasados rede e fogão
você esquecerá que os vizinhos dormem
que o silêncio é cardíaco e com as mãos trêmulas
vai abrir a janela e ler como se
arrombasse aquelas estrelas todas

 

 

relato de um pequeno deus #3

um homem não escolhe seu desastre
apenas quantos cigarros vai fumar
e por quais ruas se perder
já que – trágica e sempre –
a equação erótica dos limites
o transforma em prisioneiro do corpo

um homem não escolhe seu desastre
mas berra versos desconexos
entre pagadores de boleto
e saqueadores de energia

ninguém vai abrir a porta
se era isso que esperava do mundo
saiba que ninguém, nem mesmo aqueles
beijadores do teu rosto e bebedores do teu vinho
vão girar a maçaneta

teu chamado mudará a rota das formigas
assustará alguns cachorros
dispersará o galinheiro
e só

 

 

.eu te amo, mas não.

eu te amo, mas essa culpa de não ser me leva
prefiro a pedra ao pássaro triste e seu estranho ninho
feito com restos de arames farpados e palavras não ditas
eu te amo, mas não funciono perto de ti como funciono sozinho –
resolvo meus problemas
como quem põe fim à uma guerra e me diga, afinal, que guerra acaba
bem?
eu te amo, mas olha ao redor e perceba nossa paz estéril
apenas cansamos das próprias vozes e transamos ao som
de Chet Baker pra não pirar – eu vejo as fábricas do teu peito
demitindo trabalhadores do século XIX com a mesma calma que
você pensa na morte de toda minha linhagem familiar acendo
meu derby, você toma seu daime
e o mundo continua uma merda, diz aí – e não há saída
e só nos resta matar o presidente ou decodificar o que nos prende
como Alan Turing ou a como a criança quando quer sair do berço
pra cometer um genocídio no quintal – eu te amo, mas não
há chances que superem nossas faltas – onde você estava quando
o mundo soltou minha mão e eu dormi no sofá enquanto
uma velha Philco Hitachi chiava e ria da minha solidão?
pensa bem, pensa bem
eu vi que você sorria como os russos bombardeando
o parlamento alemão e naquela hora eu saquei – eu te amo, mas não

 

 

Ithalo Furtado – Escritor e compositor, piauiense, 34 anos, 3 livros publicados, semifinalista do maior festival de compositores do país – o FENAC – em 2018, idealizador da Coletânea Carnavalhame – que já vai pra sua quarta edição -, tem 2 cachorras e algumas plantas de patrimônio acumulado.

 

 

 

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