“O amor me distraiu e tropecei em Paris” – Três poemas de Mariana Portela

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MORADA

O amor me ensinou a chorar durante o sexo.
O amor me distraiu e tropecei em Paris
Amanheci em Lisboa.

O amor me fez perder o voo e o comboio
O amor me fez parar na sua cama
sem você estar lá.

Eu vi o amor na manhã de Alfama
porque o inventei.
Ele tinha sotaque da Sardenha
e uma bagunça digna de Monicelli

O amor é leve como o autocarro 758
cheio de anedotas
velhos
cegos
e crianças sorridentes.

O amor atravessa as encarnações
em amizades inseparáveis
em ódios mortais
em abismos intransponíveis.

Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.
Monica e Marielle.
Hamlet e Ophelia.
Hilda Hilst e Nélida Piñon.
Clarice Lispector e Lúcio Cardoso.
Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Jung e Freud.

O amor gera filhos lindos
louros
que nos fazem amar ainda mais
os nossos companheiros.

O amor também acaba
como sabiamente nos profetizou
Paulo Mendes Campos.
E quando ele acaba
sobra o vazio.
Às vezes fértil.
Às vezes apocalipse.
Mas sempre
porque houve amor
há uma galáxia sendo gestada.
Há futuro.

Ontem eu me encontrei com o amor
numa dedicatória psicografada.
E numa música que há anos não ouvia.
E vi o amor entrelaçado nas mãos de um casal.

Tenho visto o amor em tudo:
nas garagens
nas esquinas
nas ventanias
no azul.

E você não está aqui
para cantar comigo todas as canções.
Não tenho o seu olhar cúmplice
quando apanho o autocarro.

Caminho só pela avenida Liberdade.

Quando disse que o meu poema favorito do Pessoa
era aquele
não havia ninguém para me imitar.

Talvez seja essa
a grande lição da sua ausência:
descobrir onde há amor dentro de mim
endereçado exclusivamente a mim mesma.

 

 

***

Em meio ao irritante espetáculo dos dez anos,
memórias violentas de janeiro de 2009.
O primeiro inverno em Lisboa.
Sentia um pouco de ódio pela cidade.

Adorava lavar minhas roupas,
numa tentativa grotesca de lavar
a mim mesma.
elas permaneciam úmidas
e tinha medo de apodrecer.

Jamais hesitaria em começar
a escrever
às quatro da manhã
como temo agora.

Estranhas são as amarras que tecemos
para os nossos talentos
sem traumas aparentes
(onde foi que a literatura me violou?)

Há dez anos eu passava
talvez
o mesmo frio
O relógio despertava cedo

Outrora, quiçá,
acreditasse em mais sonhos

Ah,
Quem sabe,
ainda não conheça
os sonhos
em que devo acreditar.

Terei sido mais feliz?

Hoje,
vi personagens irretocáveis.

E lembrei:
a escritora que perseguia à altura,
cá está.

 

 

PIERROT

“Estou lendo um romance de Louise Erdrich. A certa altura, um bisavô encontra seu bisneto. O bisavô está completamente lelé (seus pensamentos têm a cor de água) e sorri com o mesmo beatifico sorriso de seu bisneto recém nascido. O bisavô é feliz porque perdeu a memória que tinha. O bisneto é feliz porque não tem, ainda, nenhuma memória. Eis aqui, penso, a felicidade perfeita. Não a quero.” 

Eduardo Galeano em O livro dos abraços.

 

Uma caixinha de música, às vezes, dá corda a mim.
A poesia gorda me envaidece com seus versos, perfeitos.
Eles vêm, sonhos oraculares,
em cores de Van Gogh e voz do Salvador.

É difícil dar-lhes nomes,
ou decidir o primogênito.

Gostava de morar na beleza primeira que tem as letras,
antes da oração.

Uma boneca antiga visita-me a infância.
Faz do passado uma colheita de outono.

Uma caixinha de música,
às vezes,
dá cordas em mim.

Manipula meus títeres anteriores.
E vai-se embora como a nuvem derradeira
que insiste em acariciar o Tejo.

Uma caixinha
de música,
às vezes,
desperta o pierrot aprisionado no brinquedo.

Dilacera as dores cicatrizadas.
Dá risada dos projetos juvenis.

No dia em que a caixinha de música for abreviada pela obviedade,
talvez seja feliz.

A memória,
Poética,
é sempre lapso
dos possíveis futuros.

 
 

Mariana Portela é psicóloga e escritora, natural de São Paulo. Vive em Lisboa. Participou de diversas antologias e coletâneas (Senhoras Obscenas, MundoMundano, Prólogo #1 e Descontos de Fadas) e publicou Viver é Fictício pela Laranja Original, em 2018.
Acredita que há de chegar o dia em que viva apenas de Poesia.

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