“não é a viscosidade das emoções a grafar-se” – Três poemas de Victor Oliveira Mateus

 

 

Fala de Adriano para Yourcenar

Somos as viagens que fizemos, a ânsia de encontrar
no turbilhão dos homens todas as cidades que havíamos
de construir. Somos esta imortalidade a que os deuses
nos condenaram e que agora fruímos com a desabusada
naturalidade que alguns entendem por afetação
de gelo ou por um aristocratismo que em verdade
nunca sentimos. Somos o azul inconfundível do Egeu
com suas ilhas e templos, com suas ruínas e colinas
onde as mais antigas vozes ainda se levantam,
para logo se emaranharem na agitada distração
dos homens. Somos este vazio que ficou, esta memória
a que nenhum de nós consegue fugir: tu a vigiar
um cancro impiedoso, eu com um afogado nos braços.
Ambos derrotados antes de tempo! Ambos com toda
a glória que nos insistiam, apesar do nosso cansaço,
do nosso isolamento, da nossa fome de silêncio.
Somos esta culpa por não termos entendido,
por não termos sabido ler ternura e merecimento,
por termos deixado escapar o que afinal era
bem nosso por direito e coração. Somos este fogo
que não tem nome. Este monstro que nos devora
e envenena ainda as manhãs, quando, insones,
tateamos a penumbra e não encontramos
os seus rostos, os seus corpos tão prolongamento
dos nossos, o seu respirar que nos enchia a vida
e cuja ausência nos desenha hoje essa morte
que se avizinha. Somos este aziago anoitecer,
este trémulo deambular, que, no sopro ordenador
do mundo, espera a barca que nos devolverá
tudo aquilo de que não cuidámos como devíamos.

 

 

Antígona

Talvez preferisses gritos, súplicas
ou – quem sabe? – que rasgasse
as vestes e me desfizesse. Mas, temível
Creonte, eu tenho a experiência
de quem não cede, de quem percorre
os trilhos das margens e apenas ouve
o antigo saber da terra, o único a quem
vivos e mortos pertencem
e nos fervilha nas veias sem sabermos
como nem porquê. Podes, ó hábil,
misturar as palavras, confundir
as frases em discursos e experimentos
de glória. Mas a tua glória não passará
de um mero nome, e mesmo esse
com tantas dúvidas à mistura;
a tua glória – pequena barca
de pergaminho a apodrecer nas praias
jónicas. És nada, ó ridículo mensageiro
do novo, e máscara alguma acrescentará
essa imensidão de nada, que jamais
conseguirás dissimular. Poderás perseguir,
infamar, convencer até outros
a que o façam também, mas
nunca iludirás o imperturbável
movimento do grande ciclo, esse
onde os deuses cobram todos os gestos
segundo a ordem do tempo; local
onde nos movemos: breves,
banais – e talvez dispensáveis.

 

 

“O que dói não são as roturas… “

O que dói não são as roturas, o afastamento,
a incapacidade a minar como um cancro
oculto e certeiro. O que dói não é
a pouca solidez com que se disse
esta ou aquela palavra, esta ou aquela frase;
com que se insistiu, apesar de receios vários,
na grotesca encenação do que se previa
muito aquém de qualquer futuro. O que dói
não é a viscosidade das emoções a grafar-se
em algum mapa antecipadamente condenado,
nem tão-pouco a insistência de uma insolúvel
lembrança a fugir. O que dói verdadeiramente
é acordarmos um dia e descobrirmos
que nada disso teve importância alguma.

 

 

Victor Oliveira Mateus é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa. Tem nove livros de poesia – dos quais se destacam Pelo Deserto as Minhas Mãos (Coisas de Ler, 2004), A Irresistível Voz de Ionatos (Editora Labirinto, 2009), Regresso (Editª Labirinto, 2010), Negro Marfim (Editª Labirinto, 2015) e Aquilo que não tem nome (Coisas de Ler, 2018; obra finalista do Prémio Literário Glória de Sant’Anna 2019) – e vários textos em prosa publicados. Organizou diversas Antologias de Poesia e de Contos Portuguesas e Luso-brasileiras, das quais sobressaem: Um Rio de Contos, Antologia Luso-Brasileira de Contos (Editorial Tágide, 2009) e O Prisma das Muitas Cores, Poesia de Amor Portuguesa e Brasileira (Editª Labirinto, 2010). Traduziu para português autores clássicos como Safo, S. João da Cruz e Voltaire e poetas contemporâneos de língua castelhana (Das Águas à dança das folhas, Labirinto, 2018). Foi-lhe concedido em 2013 o Prémio Literário Eugénio de Andrade pela União de Escritores Brasileiros do Rio de Janeiro e em 2017 foi-lhe outorgado pelo Ayjuntamiento da Salamanca o título de Huésped Distinguido. É membro do PEN Clube Português cuja Direção integrou e pertence atualmente aos Orgãos Sociais da dita Instituição. Está publicado em Espanha, Brasil, Moçambique, Itália, México, Equador, Porto Rico e Macau. Fez parte de diversos Júris de Prémios Literários e tem participado em Festivais Literários em Portugal e no estrangeiro. Dirige a coleção de livros contramaré e a Cintilações: Revista de Poesia, Ensaio e Crítica ambas na Editora Labirinto.

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