liberdade
eu, que sequer me sabia,
continuei jardim,
mesmo quando minhas flores
já estavam secas;
mesmo quando meus galhos
caíram sem a tua escuta.
eu, que sequer me sabia,
continuei cachoeira,
mesmo quando as águas
já tinham ido embora
percorrer outras fontes,
porque tu já não estavas lá.
eu, que sequer me sabia,
continuei arco-íris,
mesmo quando todas as cores
escolheram me abandonar
para colorir outros corpos
porque tu já tinhas partido.
foi então que (finalmente)
eu me soube,
graças ao teu abandono!
e agora, que sou livre,
não preciso mais florescer,
nem desaguar,
nem colorir,
só quando quero.
Desabada
O que há aqui dentro senão retalhos
De um peito cansado de tanto desabar?
Tento sair deste engodo e desanuviar
Mas o coração permanece rebotalho.
Não suporto mais escutar as mesmas canções
Que não me deixam esquecer essa dor
Amarga, desfazendo minha língua em rejeições
Das palavras que guardo sem pudor.
Sento à mesa e permaneço estóica
E em todos os cômodos por onde circulo
Há uma sombra quase eufórica (a me dominar)
Não se apavorem com o meu pranto
Ele é apenas acalanto da alma
Que chora porque precisa transbordar.
O vestido
lembra aquele vestido que você me deu?
“faz tanto tempo que não usa”, você disse…
fingi ter esquecido em alguma gaveta ou cabide,
mas a verdade, já faz um bocado de tempo
que o vestido não é meu…
ele se tornou daquela que já não sou…
agora, as mangas me impedem os movimentos,
a gola me sufoca e os botões me esganam.
desculpa, meu bem…
já não sei se falo do vestido ou de mim mesma…
o fato é que o copo (talvez o corpo) transbordou
e, sem saber ainda quem sou,
vou vestindo outras roupas,
até encontrar a que me cairá bem.
Myriam Scotti nasceu em Manaus, em 1981. Formou-se em direito pela Universidade Federal do Amazonas e exerceu a advocacia até o nascimento de seu primogênito. Das suas vivências com o filho, surgiram crônicas e histórias infantis, momento em que resolveu dedicar-se totalmente à escrita e publicar seus primeiros livros. A poesia chegou por acaso e de mansinho. Hoje, não sabe viver sem. Sua obra “A língua que enlaça também fere” foi lançada em novembro de 2018 pela editora Patuá.
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