por Rafael de Oliveira Fernandes
A oração do carrasco, de Itamar Vieira Junior, opõe carrascos e injustiçados num paradoxo, mas um dos maiores que há. Pois a palavra oração se opõe à palavra carrasco por um universo de palavras. Ela é indissociável da palavra corpo, da palavra alma, como a corda o é do pescoço do condenado. Antes de chegar aos lábios do carrasco, a palavra oração se liga a uma corda, e através dela, num nó, a um corpo, e depois a uma alma. Ou a várias. Entre o carrasco e a oração há essa enorme distância, muitas palavras-almas amarradas por uma enorme corda-palavra os separando. Ao final de cada linha-vida, de cada conto, essa distância vai aumentando, e parece idêntica ao conjunto de palavras que compõem cada um deles, ao conjunto de linhas-caminhos que se bifurcam e se afastam compondo cada história de injustiça. Como no primeiro conto, que narra a história de uma personagem chamada Alma em todas as suas nuances. Não por acaso, a história representa uma fuga da personagem e de sua alma, o eterno distanciamento da personagem da casa de seus carrascos, daquilo que significam. E essa distância por ora estabelecida aumenta conforme o leitor toma conhecimento de outras formas de injustiça em outros contos, em outras vidas e almas. O autor faz uma lista de injustiçados no conto que dá título ao livro. A propósito desse conto, porém, enfatiza algo importante: as pessoas que sofreram injustiça, se tivessem a oportunidade, jamais devolveriam o mal sofrido na mesma moeda. Isso é importante pois, à primeira vista, a oposição no título “a oração do carrasco” poderia sugerir uma contrapartida, a perspectiva paradoxal da vítima, a de que aquilo que é imposto ao condenado de forma injusta deve ser imposto inversamente ao algoz como forma de reparação, apenas isso, dando continuidade ao ciclo de violência, mas não é isso que acontece. O injustiçado, nos contos, não se liberta do carrasco agindo da forma oposta. Suas palavras não são uma mera repetição das do carrasco agora no sentido inverso. Aqui ele se afasta do carrasco ao máximo. E se o gesto do carrasco é o de colocar a corda no pescoço do injustiçado o gesto deste ao afrouxá-la tem um sentido muito mais amplo. Pois é um gesto que busca a vida, que afrouxa a corda para poder respirar, para libertar as cordas vocais e poder falar. Quanto ao aspecto paradoxal da oração em si, da palavra, por outro lado, é bem exemplificado no conto em que o indígena capturado pela tribo rival imagina se “comunicar” com a companheira, com sua tribo, até mesmo com a alma da floresta, que parece ouvi-lo. Este é um paradoxo contido em todas as orações, quando palavras ditas a nós mesmos em silêncio são ouvidas não por nós, mas justamente por quem a princípio não pode ouvi-las. No caso do indígena, sua oração parece ser ouvida, além daqueles com que pensa se comunicar, pela “Alma” do primeiro conto, assim como a oração desta é ouvida pela alma do penúltimo e assim por diante, paradoxalmente as palavras ditas por cada um seguem ressoando depois que cada conto termina. E suas palavras assim são uma verdadeira oração, tem todo o seu significado, porque expressam o desejo de viver contido na alma dos personagens. Desejo este que está contido em seus corpos, que passa ao leitor e à sua alma através de uma corda, de um nó que é também o mais frouxo que há, um nó paradoxal, uma espécie de laço.
Rafael de Oliveira Fernandes, escritor, autor dos livros Menino no telhado (ed. 7letras), Cadernos de Espiral (ed. 7letras), e Vista Parcial do Tejo (ed. Patuá)
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