À FLOR DO FOGO
Bate o desejo suas lentas águas fundas,
e desata sobre nós: seus laços vivos – sôfregas: suas teias,
trançadas de relâmpagos. Digo:
aqui tens o colo que te dou.
E tu alongas o teu corpo em oferenda pelo chão:
o olhar pundonoroso que súbito trespassa,
implode – aferindo o rumor tocado
pelo ar − ao alto e em redor.
E eu revolvo os teus cabelos sentados no meu colo,
como quem perscruta um rio desde a infância,
e agora plantasse horizontes no teu rosto.
− Fecha os teus olhos, meu amor,
fecha os teus olhos, e abre − perfeita –
a lentíssima nudez – em flor
e fruto,
dançada.
As mãos devoram as mãos – devoram
suas marcas, seus ofícios: alimentam-se
do refazer esculpido e trabalhado dos corpos,
do estremecimento abrupto dos sentidos.
As línguas iluminam o sal dulcíssimo da pele:
como relâmpagos navegando
alucinados – procuram:
a secreta e nocturna flor do fogo.
E o ar perfuma-se de nós
como um bosque das suas árvores atentas.
E passam beijos que se demoram – sexo a sexo:
a respiração crepita num tremor jubiloso.
E todo o chão é lençol e mar − e dentro de ti,
eu te me dou inteiro
− oh meu amor
acabado de nascer!
3.1-20.8.2013
In: Noite Vertical. Lisboa: Língua Morta, 2017
FALAM, CONVERSAM O MUNDO
Para Arnaldo Santos e José Luandino Vieira,
Meninos Mais-Velhos dos Pássaros e dos Rios,
na celebração dos seus 80 anos de Vida e Poesia
Falam,
conversam o mundo.
E do segredo mínimo
das águas – correndo,
ascende o brilho
do ouro submerso.
Estão sentados no fogo antigo
da Terra – escavam,
retiram as palavras
do seu estado larvar,
atam seus cordões umbilicais a ventres
inaugurais e púberes:
− A palavra,
dizem: procura-a
na concha do ouvido.
Que ela cante – expedita e natural.
Estão sentados no fogo antigo
da Terra – a voz é o seu poder
e bordão:
caligrafia aérea e cantante
insculpida no sangue e sua dança
− batendo, fluindo, sustentando
a escultural melodia da Terra:
de geração em geração: o mundo,
nosso – canto,
poema.
E que a palavra seja –
modelando-se por águas noctívagas,
iluminadas,
ao rés do vento: epopeia breve
− que o tempo alonga,
acrescenta,
rememora – a voz.
E estas mãos:
sua inumerável herança.
8.9.2012 – 29.7.2013
In: Noite Vertical. Lisboa: Língua Morta, 2017
OS CINCO SENTIDOS
Todos os dias o ouvido ouve aquilo que ainda não ouviu.
Provérbio Bambara, Mali
Não há dia nenhum
em que os teus ouvidos
não oiçam
aquilo que nunca antes
lhes foi dado escutar.
Não há dia nenhum
em que os teus olhos
não vejam
aquilo que nunca antes
lhes foi dado observar.
Não há dia nenhum
em que o teu nariz
não inale
um odor que nunca antes
lhe foi dado a conhecer.
Não há dia nenhum
em que as tuas mãos
não tocam
em algo que nunca antes
lhes foi dado acariciar.
Não há dia nenhum
em que a tua boca
não prove
um sabor que nunca antes
lhe foi dado a degustar.
Não há dia nenhum
em que a vida,
o mundo,
os cinco sentidos
não te surpreendam.
− Não há dia nenhum!
Não há dia nenhum!
Não há dia nenhum!
In: O Sábio de Bandiagara: Esconjuros, ebriedades e ofícios. Lisboa: Maldoror, 2018
Zetho Cunha Gonçalves nasceu na cidade do Huambo, em Angola, em 1960. Poeta, ficcionista, autor de literatura infanto-juvenil, antologiador, tradutor de poesia e organizador de edições. Publicou, desde 1979, mais de 30 livros, entre os quais se destacam, de poesia, A palavra exuberante, 2004; Sortilégios da terra: Canto de narração e exemplo, 2007; Rio sem margem: Poesia da tradição oral, 2011; Terra: Sortilégios, 2013; Noite vertical, 2017; O Sábio de Bandiagara: Esconjuros, ebriedades e ofícios, 2018.
De literatura infanto-juvenil, publicou no Brasil: Debaixo do arco-íris não passa ninguém (poemas), Língua Geral, 2006; A caçada real (teatro), Matrix, 2011; Brincando, brincando, não tem macaco troglodita (poemas), Matrix, 2011; A vassoura do ar encantado (estória), Pallas, 2012; Rio sem margem: Poesia da tradição oral africana, Melhoramentos, 2013; Dima, o passarinho que criou o mundo: Mitos, contos e lendas dos países de língua portuguesa (Antologia), Melhoramentos, 2013.
Organizou edições da obra de poetas e escritores portugueses como António José Forte, Luís Pignatelli, Natália Correia, Mário Cesariny, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, e do poeta moçambicano Luís Carlos Patraquim. Está representado em várias antologias e tem colaboração dispersa por jornais e revistas de Angola, Brasil, Moçambique, Portugal, Macau, Itália, Espanha e Alemanha.
Vive atualmente em Lisboa, dedicando-se inteiramente à literatura.
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