Espírito ruminante – conto inédito de Adriano B. Espíndola Santos

 

 

Caudaloso, um rio sobre mim, em suma história…
Podem ainda dizer que era “caviloso, um tipo esquisito”, minha mãe assim me descrevia, sem cerimônias; mas havia, de fato, uma torrente que me imergia, forçosa; condicionava-me ao pequeno e circunscrito espaço da minha existência.

Em vida, arrebentava-me incansável na busca pela perfeição. Como? Outro miserável, o meu psiquiatra, o doutor Abdias de Aquino, tentou a todo custo me ajudar – não foram poucas as vezes que o acordei altas horas da noite querendo entender uma palavra específica da nossa última conversa-terapia. Ele, vacilante, já não sabia o que fazer. Suplicava, “Pelo amor de Deus, Hidelbrando!”, sendo ateu.

Diagnóstico tardio: acometido pelo transtorno do vício da perfeição, atrelado à depressão, à desordem alimentar, à ansiedade etc., etc., etc. Com o mal da “pressão inconsistente”, cobrava-me a mim horrores e, obviamente, não me via satisfeito; atribuía às pessoas que me aguentavam o malogro da minha jornada. Houve momentos em que me senti em posições diametralmente opostas: o implacável carrasco, açoitando na subida íngreme, e o burrinho de carga, num recôndito perdido deste largo país-continente, invisível, exaurido. Fui me esfarelando em minúsculos pedaços, tal qual lajotas, blocos de concreto, que se despregam de prédio mal-amanhado, sujeitando a vida dos passantes; esmigalhando no chão e perdendo o viso, com o impacto da queda.

Os poucos que tinham coragem de se chegar diziam: “Hidelbrando, és um vencedor!”. Não dava a mínima a tais baboseiras, se era obrigado a vencer, dia após dia, a cada amanhecer – o pleonasmo e o exagero são propositais –, as minhas arrelias, o meu temperamento mortificado.

Eu tinha um espírito ruminante, além do mais. Criam que minha insônia crônica derivava de um cérebro pensante, admirável – no entanto, só eu sabia, ruminava a dor; o que as pessoas pensavam de mim; o que devia ter aprimorado no dia; o que deixei de fazer; o que não pude dar à Maria… 

No fundo, no fundo, conhecia o motivo de Maria ter me deixado. Ela tinha razão. Ficar com um cabrunco deveras problemático era mesmo de se debandar. A incauta preservava aparente normalidade; deveria buscar refúgio. Nos nossos últimos meses não a via mais que duas horas por dia. Quando saía para pegar ar e abastecer os bolsos, fora do porão de casa, onde tinha montado o meu búnquer anticivilizacional, via Maria chorando copiosamente.

Naquela dimensão mundana, foi somente com a sua ausência, da única mulher possível de me aturar, até então – nem minha mãe o fez, sem o peso da obrigação parental –, que percebi ter ido longe demais. Admito que fui egoísta, até certo ponto. Não quis dar um filho à Maria.

Maria era de boas prendas, mulher diligente, ama segura; todavia a nada seria permitida a sujeição à minha desgraçada existência. Quanto ao filho, se ainda tivesse a oportunidade de conversar com ela, a grande questão era expor ao mundo um gene amaldiçoado como o meu, de um sujeito com o pai esquizofrênico e a mãe degenerada pela droga – vários problemas psíquicos devia ter, decerto.

No dia dezesseis, há um mês, parti dessa para pior: um infarto agudo do miocárdio. Estatelei-me, teso, na mesa do laboratório da universidade. Só o segurança viu, duas horas depois. Era domingo.

Alojaram-me, sem sobreavisos, num breu danado, uma descontinuidade. Não se conjectura se vai para cima ou para baixo; se chegará um cristão para me orientar nesse calabouço. Fico contando minutos imaginários para passar o tempo. Que tempo? Que lugar? Enfim, perde-se a orientação. E eu que pensava não a ter. Mas quem pôde conter
o meu ímpeto voraz à degradação?

Embora essas agruras tenham me atormentado no campo material, não pude estimar uma tal satisfação suprassensorial, a premiação do Nobel – diga-se de passagem: o primeiro brasileiro a obter tal feito –, dada à minha esposa, de cerca de um milhão de reais, pelos estudos que desenvolvi com proteínas sintéticas para o combate do vírus HIV. Depois de perder minha mãe, e achar tão mesquinho o empenho global nesse sentido, dediquei os meus derradeiros dias à cura. Virei o centro das atenções, post mortem.

– Já dei o que tinha de dar, insaciáveis sanguessugas! Esqueçam-me! –

 

 

Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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