Fernando – Vi em seus poemas duas sintonias, vamos chamar assim, estas afinidades eletivas do som\ritmo, que é musicalidade afinada com uma afetividade estonteante. Para mim em certos poetas há um excesso de formalismo cerebral nos poemas. Você opta pelo percurso oposto. Por quê?
Clara – Acho que porque simplesmente a minha voz poética é essa. É essa voz de ainda conseguir dançar de olhos fechados vestida com a saia velha num baile de palavras galantes. Ainda consigo, às vezes, esquecer do mundo e dançar sem técnica, para festejar as vontades de dentro e não as dos olhares de fora. Acho que é uma conexão. Pra mim escrever assim é que é prazeroso. O mundo externo já nos dita tantos ritmos, na poesia eu quero preservar o espaço de sentir o corpo mexendo, as vísceras sendo, sem técnica mas com vontade de entrega. Não é uma performance, é uma diversão.
Mas acho também que para minha mente filosofante, e minha existência que tem sido bastante corajosa em experimentar a vida, poesia é sobretudo conteúdo e não apenas forma (é um bom casamento dos dois, sim, mas é sobretudo conteúdo). Deve ser porque tenho pavor de cascas bonitas e interiores rasos, fracos. Enfim… sigo por aí.
Fernando – O corpo humano esconde certas emoções. Os órgãos também são depositários das emoções: o coração sente, o pulmão entoa-canta, o rim desagua. útero acolhe. Há uma cantiga ligando as emoções\afetividade aos órgãos que trabalham mas também de certa forma cancionam a canção. Uma metáfora corporal. Seu livro parte dos arquétipos dos órgãos para fazer poemas. Como foi esta divisão entre cada órgão e sua música\métrica\poema?
Clara – Muitos poemas do livro foram escritos com algum órgão do corpo. Tem poemas que vieram do útero, outros da vagina, outros de um aperto no peito, de um frio na boca do estômago, de uma queimação no estômago… Vieram de vazios e de excessos, da loucura desaguada e do silêncio alcalino. Da inflamação e da válvula de escape. Eu tentei dividir os poemas do livro em 4 grupos, nesse sentido. Na primeira parte, fígado, estão poemas irônicos, sarcásticos, críticos às vezes… Na parte 2, pulmão, é o grito, a crítica continua e extravasa. No útero, é o feminino derramado, a paixão e a acolhida, a dor também. Na última parte, coração, são poemas mais meditativos, contemplativos, do simplesmente estar. Aí que eu quis pensar que o livro faz um caminho da desromantização, se despe das paixões afinal.
Fernando – A palavra vísceras se repete inúmeras vezes pelo livro todo. Ela seria uma espécie de pausa sonora entre as partituras musicais dos órgãos?
Clara – O nome do livro surgiu justamente porque ao reunir os poemas para formar o livro e reler tudo, percebi a constância dessa palavra, e foi acidental (ou não)… de alguma forma essa palavra aparecia em vários poemas. Eu não sei dizer de onde vem meu gosto por essa palavra, talvez ela surgiu nos poemas pelo ritmo mesmo, não parece, mas ‘vísceras’ é uma palavra bastante musical, eu acho… rs
Fernando – Qual é para ti a função da palavra no poema? Você a usa com um primoroso caso\enamoramento da relação nem sempre casual entre semântica, sentido e efeito.
Clara – Ah, a palavra no poema, a palavra poética é uma magia, é algo que você encontra, é algo que vai criando um caminho de ritmo e significado. Aí você lê um poema e ele é algo que é, não tem que explicar nada, ele é uma imagem, uma sensação, ele fala com os órgãos, não com a mente ou com o intelecto. Pois é… você observou certo na outra pergunta… acho que fujo do intelectualismo exacerbado, porque na poesia não quero defender uma tese, quero gozar. Às vezes o encontro com as palavras é um sexo tântrico, algo guiando muito além ou aquém da mente.. sabe? Esse tipo de encontro. Quando leio poemas assim também embarco, eu busco autores que escrevem assim, com o corpo todo. Que escrevem não para querer ser algo, mas para poder entrar em comunhão.
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