Metáforas e metonímias entre a respiração e a apneia – por Regina Celi Regina Celi Mendes Pereira

Foto de Neurivan Sousa

 

por Regina Celi Mendes Pereira

 

Li Fundamentos de respiração e apneia de Alberto Bresciani, publicado pela editora Patuá, 2019, como se fosse um livro de um longo e único poema, subdividido em seções. De início, não planejava ler assim, de um fôlego só, mas devagar, seguindo o ritmo da respiração, palavra-chave nesse belo e originalíssimo livro. Acontece que o ato de ler, em si mesmo, cria essas reações singulares entre leitor e texto, conferindo ao leitor esse protagonismo em decidir seu ritmo de “respiração”. A esse respeito, Ricouer, em Tempo e Narrativa (2010), compreende que é precisamente na Mimésis III onde se opera a interseção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte ou do leitor. Para Ricouer (2010, p. 123), seria “[…] A interseção, portanto, entre o mundo configurado pelo poema e o mundo no qual a ação efetiva se desdobra e desdobra sua temporalidade efetiva”.

Ainda segundo o autor, o texto só se torna obra na interação com o leitor e é nesse espaço comum que se delineiam o Ato de Leitura e o da Estética da Recepção. Em nome, portanto, dessa legitimidade da condição de leitora, permito-me expor algumas impressões sobre o livro em sua totalidade.

Os animais, a princípio, são os grandes personagens e é na relação entre os animais e o humano “Um animal se esconde na sombra” que se constrói um fio condutor entre os poemas, configurando-lhes uma continuidade, sustentada em dois modos de enunciação poética: a metonímia e a metáfora.

Vejo o movimento discursivo dos versos fundamentado no entrelaçamento entre os princípios de Saussure e de Lacan no que se refere às relações associativas/metafóricas e sintagmáticas/metonímicas. A metáfora estaria na relação de similaridade e a metonímia operaria na de contiguidade. Nesse sentido, o livro todo se configura como uma grande metáfora “[…] E somos só isto mesmo: animais solitários […]”, nesse ponto se observa a associação (em ausência) da respiração (ou da falta dela) com outros sentimentos imprescindíveis ao eu lírico.

No plano metafórico ou das similaridades, outras relações de dependência e falta estão implícitas, mimeticamente confrontadas com as dos animais, em seu Habitat que podem ser os habitats do humano também: “[…] E nem sabemos o que nos falta/ do que fomos apartados algum dia, / porque nunca estivemos presentes sequer em nós/ E então escavamos o que já está muito seco, /em busca de água, como toupeiras, javalis/ ou mergulhamos, invisíveis baleias azuis, para gritar até que o silêncio enfim respire”.

E quando em Bisões o eu lírico se questiona, ocorre a mimetização “E seguimos como bisões” […] Olhamos para frente/E nos perguntamos,/ Os olhos bovinos,/Se este é mesmo/O nosso lugar”.

As metáforas da respiração/essencialidade e apneia/falta percorrem vários poemas “Há que se forjar o fôlego/renegar a verdade”. No tempo, na passagem do tempo e na memória “Melhor nos serve/ memória dos peixes/- breve, breve, breve”, que também são elementos refigurados, tornados imprescindíveis na dimensão do humano, os quais também vão se metamorfoseando, embora, talvez por Instinto, quando explica o poeta “porque o mundo dos homens não sabe a metamorfose” […].

Nesse ponto, opera-se a relação de contiguidade entre o animal e o homem posta no plano metonímico, no Mimetismo: ”[…] Observa enquanto em seu corpo/crescem mais pelos, garras, uma asa e mais pernas, glândulas/de veneno, tinta e feromônios […]”.

A identificação do humano com o reino animal, um tomado por outro, o humano compartilhando as dores dos animais, uma vez que somos todos parte de uma matéria única. Ainda que não sugira exatamente essa ligação todo-parte entre os seres do universo, no sentido lançado por Spinoza, o poeta antecipa o vínculo em ParábolaQualquer animal aprende/ os gritos de alerta, o medo/ das aves de rapina, ciladas/ dos grande felinos.

O medo dos animais pode ser o medo dos homens, ambos podem ser presas e caçadores durante a Travessia: “Ainda assim/ não há/ como evitar os passos,/ o imã do destino/ E os animais/ atiram-se à correnteza/ Precisam saber/ o outro lado.”

A analogia com os animais quase nos convence, até que em Rota Migratória impõe-se o retorno ao espiritual, ao religioso, à tradição, materializada na imagem do totem, a herança que desestabiliza o instintivo, visceral, primitivo que se presume coexistir na co-presença homem-animal: “Regressaria para os totens/ voltaria porque insistimos nisso,/nós aves, peixes, os esquecidos, alguns tipos de répteis, os assassinos/ Pensamos: voltar é ritual de perdão”.

Ainda que se estabeleça a metonímia como plano do dizer, essa contiguidade não se sobrepõe ao plano metafórico-associativo, antes é tentativa de mascaramento, conforme é sugerido em Ocasião, Máscaras e armaduras/nem sempre são falsas/ às vezes são casco, concha,/epiderme, coisa que vem com/Nenhum sacrifício ou ofensa/ mas sorte, proteção/ O bicho que se faz de morto/ salva-se de outro/ cheio de garras / e dentes”.
Novamente, temos a metáfora, apneia por falta, a preencher um espaço do quase dito.

Nas entrelinhas da Parábola, em tom profético, o poeta insinua: “As árvores sopram sinais/ Fale! Ouça!/ e o mundo continua surdo e mudo”.

Os poemas de Fundamentos de respiração e apneia guardam mistérios para além dos movimentos respiratórios. Uma leitura instigante, que provoca a reflexão, exercita a escuta e, ao mesmo tempo, nos ajuda a respirar, como só a boa poesia consegue fazer, e a acreditar que, apesar do medo “mais dois metros/e as tartarugas se salvarão/ O mar bem ao lado.”

 

 

Referências

BRESCIANI, Alberto. Fundamentos de respiração e apneia. São Paulo: Editora Patuá, 2019.
RICOUER, Paul. Tempo e Narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

 

 

 

regina celi 2019 230x300 - Metáforas e metonímias entre a respiração e a apneia - por Regina Celi Regina Celi Mendes PereiraRegina Celi Mendes Pereira nasceu em João Pessoa, em 1963. É professora da Universidade Federal da Paraíba, pesquisadora 1D do CNPq, editora da Revista Prolíngua e coordenadora da sub-sede da Cátedra UNESCO em Leitura e Escritura.
Tem vários livros, capítulos e artigos acadêmicos publicados em periódicos especializados, em Linguística Aplicada. Seu primeiro livro de poesia é Versos no Camarim, publicado pela Penalux (2018), mas já publicou poemas no blog Zonadapalavra, nas revistas digitais Mallarmargens, Literatura & Fechadura, Gueto, no suplemento literário Correio das Artes e na Germina.

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This Article Has 1 Comment
  1. Roberto Monteiro Reply

    Mais dois metros e as tartarugas se salvarão. Ou não. Se o mar não tá pra peixe, imaginem para filhotes frágeis e desprotegidas de tartarugas. Uma onda a mais, um metro vencido não é garantia de vida. É um mero passo a mais rumo a um destino desconhecido, mas que a estatística garante: poucas sobreviverão. Metonímia alguma, metáfora qualquer farão com que o animalzinho sobreviva às leis da natureza. Que são mortais. Talvez a poesia nos salve de nós mesmos quando adentramos os mares interiores nos quais afogamos nossas desilusões, mas não salvará as tartaruguinhas…
    Fui! Já escrevi demais e fui muito pouco lido.
    Saudações marcianas!!!

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