Dois poemas de Vitor Miranda

 

 

 

A GENTE NÃO QUER VOLTAR PRA CASA
 
abri o portão
o cachorro fugiu
joguei tudo pelos ares
corri atrás dele
que virou a esquinao cachorro virou lebre
eu virei cachorroenquanto os ciganos
apostavam na lebre
ou no cachorro
eu virei Alice
e nós viramos tudo
que queríamos serassim correndo pela noite
fomos sendo qualquer coisa
pois assim como Waly Salomão
temos fome de ser tudo que não somos

assim sendo
corremos por todos os mundos
que nunca correríamos

de repente já somos dois
qualquer coisa
correndo lado a lado

de repente um casal de namorados
de mãos dadas caminhando
por uma folha amassada
que o escritor arrancou da máquina
e jogou no chão
que agora era lida pela empregada
que foi obrigada pela vida
a recolher sonhos frustrados
de outras pessoas
que amassam papéis

corremos pela folha
deixando histórias
corremos pelo quarto
corremos pela vida da empregada
levando ela pela sala

fizemos uma salada
de amor

agora éramos três
e eu já nem sabia 
quem era Alice
quem era eu
quem era o cão
já nem sabia
quem era a empregada
quem era cigano
quem era patrão

estávamos numa festa
junto com os ciganos
nós três éramos dez
dançando num abraço apertado
onde o gato era a lebre
e a lebre era o gato
e eu já era empregada do mês

corri dali atrás 
do gato lebre
que correu
outra vez

dessa vez
fomos mais longe
pois a lebre
era mais rápida
que o cachorro
o gato subia muro
e eu

eu descia do escuro 
para o claro
lembrei-me
que era raro
alterar o percurso da vida
nas idas e vindas
do trabalho pra casa
só fui desviar de rota
quando o cachorro fugiu

aquilo que eu chamava de vida
já nem sabia se assim
se chamava

descobri então
que não me amava

e então
continuei a correr
sabendo que jamais
alcançaria o cachorro

pois a gente não queria voltar pra casa

(do livro de mesmo nome)

 

 

PORRA!

 

é tanta vida
e tanta porra
desperdiçada 
em papéis higiênicos
em pisos de banheiros
em peles e gargantas
em plásticos 
preservativos
e muitas vezes
é tanta porra
e tanta vida
desperdiçada
em óvulos fecundados

(inédito)

 

 

Vitor Miranda, 29 anos, paulistano, poeta, escritor, ainda não se formou. Um dos criadores da Banda da Portaria. Autor de três livros: Num mar de solidão; Poemas de amor deixados na portaria; A gente não quer voltar pra casa. Prepara seu último pela editora Desconcertos: A moça caminha alada sobre as pedras de Paraty. Depois vai se aposentar aos 30 anos.”

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