por Paulo Rodrigues
Professor, poeta e escritor
“não existe grandeza onde não há simplicidade, bondade, e verdade”.
(Tolstói)
Transcender é um verbo que joga a palavra para o céu. Busca a asa do colibri e sustenta-se no alto, com um bater quase mágico, ou melhor, divino. Tão rápido que nos cega. Perito na arte como um monge budista, sabe elevar-se. Retrata muito bem o último livro lançado por Luís Augusto Cassas, pela Editora Penalux, em 2018.
Recebi a obra completa do Cassas pelo SEDEX. Fiquei entusiasmado com a qualidade deste consagrado poeta contemporâneo, dono de uma vasta produção. Premiado e detentor de uma fortuna crítica musculosa, capaz de apontar caminhos seguros para a literatura brasileira.
Não resisti. Comecei a lê-lo pelo Paralelo 17. Coletânea dividida em seções didaticamente pensadas: os meridianos de fogo, o caminho das pedras azuis, a face cinza da aurora, onde o vento faz a curva, viagem ao DNA ancestral, nuvens & pétalas e o vale da lua crescente. Todos os pontos importantes da poesia deste “poeta inédito” estão espalhados aí, numa cama de plumas.
Álvaro Alves de Faria afirma na segunda página da apresentação: “o poeta está do lado dos que são honestos com a poesia, com o poema, consigo mesmo. Um poeta que simplesmente é poeta”. Estas conclusões ampliam o estudo do (círculo 17).
Em AS PURIFICAÇÕES, o eu lírico experimenta a levitação pela palavra:
só existe
uma curva verdadeira:
a palavra.
o resto:
purificações.
(CASSAS, 2018, p.73)
Há uma fuga da imanência, provocada pela voz poética, com o jogo de alteração real da vida, feito pelo elástico da metáfora. “A palavra é a única curva verdadeira”. Uma afirmação com a carnadura de premissa filosófica que nos ajuda a penetrar nas belezas transcendentes do Cassas.
Por outro lado, a purgação, o desfazer-se das impurezas proposto já no título do poema, elevam a construção espiritual do poema. É um autor, portanto, desenhado na espiritualidade universal.
Nesta mesma perspectiva, o texto A NECESSIDADE É A MÃE DA LIBERDADE inaugura um olhar humano para o injustiçado no sistema capitalista, que representa uma parcela enorme do desejo de “apenas almoçar:
casaco cinza surrado
sobre camiseta branca
barbante nas calças
o mendigo-iogue
em greve de fome
sentado em padmásana
à porta do metrô
latinha vazia ao lado
c/ a inscrição:
‘preciso almoçar,
obrigado.
(CASSAS, 2018, P.83)
A constatação da inscrição é escatológica. Cassas leva a dureza da vida para a cena do poema, de maneira que, nos toca profundamente e nos sacode. Precisamos ferir os olhos. Eles precisam enxergar e transcender para um outro humano, mais coletivo/solidário.
Em seguida, ele forma uma imagem coetânea. Há uma nítida inversão de valores em A ESTRANHA ARTE DO CUIDADO:
os bichos os bichos
estão bem cuidados
os homens os homens
é que comem
lixo.
(CASSAS, 2018, P.91)
A palavra de Luís Augusto Cassas acende o fogo, nos sentidos de quem não sentia mais. Posso inclusive, apontar o diálogo entre o poema acima e O Bicho de Manuel Bandeira. Ambos são cartazes de denúncias. Não suportam mais a coisificação do homem. Há um sentimento de revolta na repetição de “os homens os homens”. Uma repulsa do quadro social injusto.
Toda obra poética que mergulha profundamente na realidade cósmica primordial, torna-se rival do pragmatismo neoliberal, por isso faz denúncias mesmo sem percebê-las, em muitos casos.
Na imaginação de Cassas é possível inverter a lógica da exploração como observamos nos versos de AVENIDA PAULISTA (A PROFECIA), página 95:
quando se cumprir
a profecia
de Isaias.
e os lobos
confraternizarem
com os cordeiros.
serão os mendigos
servidos
pelos banqueiros.
e soarão trombetas
de júbilo
no universo inteiro.
O sonho, a esperança, a harmonia convivem com o poeta. Cassas alimenta o mistério da profecia como um cristão, apesar de ser estudioso Taoísta. A criatividade dele nos mostra um mundo novo e idealizado como o de Platão. A realidade cruel, talvez não atenda aos oráculos do poeta, no entanto, sua escrita é reflexiva, consciente, ao ponto de transcender.
Finalizo com uma citação de Sophia de Mello Breyner Andresen, que parece ler os versos do Cassas: “a fidelidade à transcendência está ligada à imanência. A essência da palavra de Cristo está no Evangelho, na revelação. Mas essa revelação só pode ser entendida se o homem quiser ver bem o mundo à sua volta”.
PAULO RODRIGUES – Professor de literatura, poeta, escritor e autor de O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de Ninguém (Editora Penalux, 2018).
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