ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor Eliezer Moreira

 

OLHOS BRUXOS ELIEZER MOREIRA - ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista  o escritor Eliezer Moreira

 

Olhos bruxos, novo romance de Eliezer Moreira, lançado recentemente pela Editora Penalux, é inspirado na obra de Machado de Assis. O título é uma referência aos olhos do escritor, tomando como símbolo o pincenê que se tornou um ícone associado à sua figura. “Bruxos” remete ao epíteto pelo qual Machado se tornou conhecido: “Bruxo do Cosme Velho”, o bairro carioca onde o escritor viveu seus últimos anos. A história tem como fio condutor o fascínio do protagonista pela obra do grande mestre e também pela antiga cidade do Rio de Janeiro, onde se passa a ação de quase todos os seus livros. Emiliano Moreira, o personagem central do romance, é um livreiro, bibliófilo e escritor obscuro que um dia, em cumplicidade com um amigo, concebe a ideia de furtar o pincenê de Machado de Assis, que se acha em exposição numa urna na Academia Brasileira de Letras. O desejo obsessivo de se apossar da relíquia surge de uma premissa delirante do personagem: ele imagina que, conseguindo usar os óculos do mais célebre escritor do país, poderá enxergar o mundo e escrever com o mesmo talento do genial criador de Capitu e Quincas Borba. Como a premissa absurda não se verifica, ele resolve devolver a relíquia à Academia.

O romance se desenvolve em dois planos narrativos: um deles tem como narrador um jornalista que se interessa pelo caso e passa a investigar o furto do pincenê. No outro, que pretende ser um pastiche da prosa de Machado de Assis, o protagonista Emiliano Moreira, em sucessivas cartas à Academia Brasileira de Letras, enviadas anonimamente, procura se justificar e apresentar as razões pelas quais furtou a relíquia e por que decidiu devolvê-la.

Nesta entrevista o autor comenta sua experiência como leitor de Machado, fala do seu livro e de como chegou à sua forma final.

 

FERNANDO Qual a relação da leitura ou a importância dela ao entrar no universo de Machado de Assis? Seria um desejo de fruição mais participativo do que, outros?

ELIEZER Vivemos cada vez mais num mundo que nos oferece imagens prontas, e assim a leitura de romances permanece como uma forma de fruição estética que leva o leitor para uma dimensão em que ele próprio vai construir o mundo que a narrativa propõe, e essa construção obviamente envolve seus sentimentos e emoções. Os romances e contos de Machado de Assis estão entre os melhores, mas essa criação de imagens pelo leitor, ou seja, sua coparticipação na construção da narrativa ocorre em todo bom texto de ficção.

 

FERNANDO  Você usa dois narradores em planos bem distintos: um no cerne do furto com as cartas, que é um texto muito homenageado ao bruxo, uma reverência talvez? E outro talvez mais “distanciado” cobrindo toda a verve do enredo. Porque adotou estas duas posições\marcas de narrar sua história?

ELIEZER Esse romance, “Olhos bruxos”, é um daqueles casos em que a narrativa se impôs tecnicamente dessa maneira. Não foi o romance que imaginei de início. Ele seria diferente, não teria dois narradores nem duas partes. O livro original e inacabado, que seria um pastiche declarado da prosa de Machado de Assis, ou uma tentativa um tanto ousada de imitá-la, ficou abandonado por mais de dez anos. Então escrevi outro, mais simples, “mais distanciado”, como você observou. Só depois de algum tempo, ainda insatisfeito, vi que era possível combinar as duas narrativas, a inacabada e a dada como pronta. Voltei ao trabalho para unificar as duas narrativas, e só então achei que o livro estava de fato pronto.

 

FERNANDO Há uma intertextualidade com os personagens do bruxo, eles são usados de forma afetuosa, mas também um pouco irônica, nas cartas dos “Papéis Avulsos”. Esta relação dialógica entre texto e personagem dá um caráter tanto experimental ao estilo machadiano como também quase meta-literário. Este fato de os personagens se deslocarem do universo da página, para “um fora deles”, você de uma forma bem interessante também fez ou faz um estudo referencial tanto da narrativa quanto dos personagens machadianos. Fale disso.

ELIEZER Acredito que essa observação remete ao que dissemos em resposta à primeira pergunta da entrevista. Essa observação parece resultante de seus sentimentos e emoções de leitor, é sua coparticipação de leitor na narrativa.
Ela não deixa de soar um pouco acadêmica ou teórica, quando você emprega expressões como “intertextualidade e “estudo referencial”, e justamente procurei me distanciar de qualquer interferência teórica, o que fica claro quando um dos meus narradores-personagens confessa: “Não amo as teorias literárias”. A narrativa é, ao fim e ao cabo, uma utopia das mais delirantes, pois fala de um leitor que quer se tornar personagem para alcançar assim a imortalidade. Ora, Quincas Borba é imortal, Capitu e Brás Cubas são imortais, Dom Quixote, idem, e assim por diante.

 

FERNANDO O furto é um elemento muito literário. Roberto Bolaño era conhecido ou há um mito em torno dele por furtar livros. Esta relação de consumo com os livros ou de desejo quase transgressor, de se apropriar dele, indevidamente, como você trabalhou isso no romance?

ELIEZER –  Sim, o furto e o roubo são desde sempre temas fortemente literários, e com outros elementos correlatos, como fraudes, traições, falsificações, assassinatos etc, eles estão no cerne de alguns grandes romances, como “Os miseráveis”, “Crime e castigo”, “Nostromo” etc. O furto do pincenê de Machado de Assis pode ser visto como um crime puro e simples, que deflagra uma investigação policial e jornalística, como acontece no romance. E pode ter significados metafóricos, como por exemplo o do desejo de apropriação do talento, da genialidade de Machado de Assis, de sua maneira ver o mundo, e até mesmo o desejo nostálgico de retornar ao Rio de Janeiro do tempo do escritor.

 

FERNANDO  A personificação do escritor dentro de sua biografia, tem muito de pertinência em Machado, pois há uma interessante relação entre obra e vida do autor. Não é apenas gostar do texto do escritor; é andar como ele, usar o pincenê, até roubá-lo, de forma a adotar sua postura de ver o mundo e a literatura. Você acha que existe esta correlação entre vida e obra, em Machado, isto é muito acentuado?

ELIEZER –  O que “Olhos bruxos” sugere é que o narrador machadiano é essencialmente um demiurgo, um artesão genial, criador de microcosmos humanos, ambientados no Rio de Janeiro do seu tempo. Não é possível saber até que ponto o narrador machadiano é ou não uma personificação do escritor, o que, aliás, fica sugerido em “Olhos bruxos” quando o protagonista, o furtador do pincenê, num momento de delírio, acredita estar diante de Machado de Assis e pergunta: “Afinal, o senhor é Machado de Assis ou Brás Cubas?” A correlação entre autor e personagem é complexa e delicada, mas não me parece que Machado de Assis, que foi antes de tudo um observador arguto e irônico da sociedade do seu tempo, tenha aproveitado aspectos de sua vida pessoal nos romances que escreveu.

 

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