por Carmen Sevilla
Meu encontro com Jennifer Trajano aconteceu no terceiro período do curso de Letras, no qual fui sua professora. Penso que deve ter sido já um reencontro, tamanha nossa afinidade e o traço que cada uma de nós deixaria na vida uma da outra. Assim, como na canção de Lenine Tubitupi, em que o poeta faz menção às primeiras estrelas vermelhas antes da explosão, aquelas mesmas mencionadas por Carl Sagan, onde havia matéria humana — o ferro do sangue, o fósforo do cérebro, o cálcio dos ossos —, mostrando que já havíamos antes de haver e permaneceremos depois de termos ido. Somos feitos de material estelar, existíamos antes, agora e depois. Deste modo, minha alma e a de Jennifer se reconectaram no transcendental sem fim. Apresentar o livro dela, portanto, me emociona de um jeito indizível.
Se escrever é um ritual, escrever poemas tão delicadamente profundos, desnudos de si e de quem os lê, com a fome de estética que o mundo, sobretudo, agora, nos submete, se torna, então, mais que um ritual mecânico, ele é sagrado, libertador, transformador.
Latíbulos não é um labirinto sem saída ou de difícil e atormentado trânsito, ele é um looping que nos faz passar pelos mesmos lugares, sem nunca sermos os mesmos, nem tampouco permanecem esses lugares pelos quais passamos, fora ou dentro de nós.
Latíbulos é um livro que nos exorciza da desesperança, nos fortalecendo com beleza.
É um livro que deixa o DNA da escrita de Jennifer marcado em nós, notadamente, de nós mulheres. É forte e delicado, agridoce, lúdico e sério, pueril e maduro, chama que nos aquece para todas as lutas, linguagem que permite abrir muitas portas e nenhuma fechar, pois nós mulheres nunca fechamos as portas da vida ou da alma.
Enfim, sem querer rotular para não me resvalar no perigo de reduzir a escrita poética da autora, ouso dizer que sua escrita é feminina, feminista, política, amorosa, educativa, espiritual, telúrica, sensual, nos sentidos mais profundos e bonitos a que cada um destes adjetivos possa nos remeter.
Latíbulos está organizado em quatro ritos: Iniciais, da Palavra, Sacramental e Finais, num paralelo espiritual, no sentido mais abrangente, santo e profano do termo.
Nos RITOS INICIAIS, temos 24 poemas, nos quais desnudamos a personalidade, as raízes em vários sentidos, e a essência da escrita de Jennifer (ou da escrita trajaniana, como deveria ser tratada a partir de agora).
Construção (música e corpo humano já na configuração visual do poema, numa construção hibridamente perfeita), Dona rosa (metáfora, mas também personagem delirante). Galhos secos como mãos encostadas ao céu, porque se vistos de longe, galhos parecem mãos encostadas no céu, pedintes de chuva. Analogia entre galhos secos e rugas em pele negra que são como rios. Infância Apodrecida (dedicado a Fernando Andrade), Sfogarsi (do italiano, confiar). Brincadeira com a palavra em italiano. Insônia, Pedaço (ao pai da autora Luiz Alberto Cavalcanti Lima), analogia entre infância, adolescência e adultez de modo lúdico associando ao andar de bicicleta, o caminho e a vida; as mãos paternas de outrora e as de hoje, o retorno do eu lírico (viagem de volta) ao passado relembrando o tamanho dos amores. Fundo do poço (poema concreto na forma, anda, nada, abismo). Irracional, Amor, Paixão (a paixão é mesmo um sentimento de dança, caça, adoecimento, perda da homeostase que, paradoxalmente, faz bem não apenas ao caçador, mas à caça). Espreita (como a sombra iluminada do felino que espera, por enquanto com as garras fechadas), Cinema (em looping com a experiência real), Varadouro (quase uma historieta), Porto do Capim, Dança (uma dança linda com significados outros de palavras, alinhando poesia e natureza). Cordilheira, Alma, Pirâmide, Educadora (a mim), Marielle Franco, presente (título no final trazendo o sentido de que quem partiu, mas cuja história contada no poema lido ficou), Violação em dó menor, Relógio, Varanda, Fonte, Entrega. Desta parte, lerei três: Dona rosa, Pedaço e Paixão.
dona rosa
vê nos galhos secos
encostados ao azul
mãos que clamam
nuvem seca
d’água que num vem
porta trancada
à nordeste do dentro
assemelha a clara abertura
entre os dedos aos negros
rios da velhice facial
que sorriu no desconforto
da mesmice enquanto
as rugas aprofundam-se
às margens da desesperança
cum voinha num choveu
cum mainha num choveu
cum a fia o fio de chuva
que nu vem da nuvem:
a sertaneja
não lamenta,
delira
pedaço
a meu pai, Luis Alberto Cavalcanti Lima
naquele tempo
em que eu não tinha
metade da tua altura
as tuas mãos
no guidom
me equilibravam
naquele tempo
em que eu tinha quase
metade da tua altura
teus pés pedalavam
meu caminho
até à escola
e todas as tardes
eram pintadas
com a cor vermelha
da bicicleta, tão forte
quanto a tua cor
nesse tempo aquarelado
das duas rodas:
pedalo até o dia
em que eu tinha
metade da tua altura
e lembro do teu riso
manchado de poucos
dentes e cheio de graxa
graça que ultrapassa
o tempo
em que eu não tinha
metade da tua altura
hoje possuo
a mesma altura tua
e choro de amor
porque recordo todo
tamanho das tuas mãos
que me subiam à bicicleta
sabendo que me deste
altura à altura
do que és
e te amo
com toda a certeza
de que fazes parte
de todos
os meus
tamanhos
[do andador
à
bicicleta]
neste tempo ultrapassado
que não passa
em que eu tenho
de ti internamente
mais da segunda
metade altura tua
paixão
a asa se viu
pousada no costume
de ser mirada pelo caçador:
quando a ameaça
se aproximava
penava, mas não voava mais
RITO DA PALAVRA apresenta-nos cinco poemas. Neles, vê-se Espiritualidade não piegas, mas do modo mais oceânico, no qual se apresenta a alma da escrita de Jennifer Trajano, escrita esta que labuta por harmonia entre as pessoas, a natureza, o cosmo, compreendendo a ideia de que somos e estamos todas e todos articulados numa engrenagem não mecânica, mas transcendental.
40 dias (não por acaso abrindo o Rito da Palavra), Passos, Deus, Livre arbítrio, Irmandade. Celebrando este rito lerei Irmandade.
irmandade
olhos que ultrapassam o tempo
olhos imensos
olhos que olham épocas distintas
olhos de quem preenche
olhos de quem sente
exageradamente
olhos que alimentam mendigos
olhos de quem vê o pai
olhos de quem as
olha na rua da areia
olhos que se voltam ao retábulo
olhos de mar imenso
olhos que viram o meu parto
e, pela virgem-maria, também saíram dele
Em RITO SACRAMENTAL, treze poemas nos esperam. Sensualidade/eroticidade como sagrada(s), no sentido de ir à essência do que somos, fomos, seremos nós.
Segredo(?) (Escrito entre parênteses justamente por ser segredo. Escrito, mas não dito, porque é segredo, mas mencionado mesmo sendo segredo, por isso, interrogação. Igualmente, portanto, frenesi produzido no leitor como é de os segredos provocar), Rendição (sobre machismo de modo irônico e sarcástico), Altar, Resgate, Canoa (intertextualidade com conto de Guimarães Rosa), Sufoco, Infinito, Olhos, labirintos, Vulva, Terra, Procura da poesia, Fóssil, Linguagem.
Neste rito, lerei Infinito.
infinito
eras
de areia
marítima
a tua
superfície
de sal e
ternura
os teus
olhos:
abismos
e os
meus
abismados
a olhar
a
cor de
açude
banhando
o
negro
cercado
senti
focinho
de peixe
nadando
no meio de
meu corpo:
um tubarão
atravessa
as pedras
das pernas
e faz ciclo
no ato
de tapar
as guelras
é
peixe
que se
afoga
e
afaga
soltando
lodo
na
textura
dura
fazendo
escorrer
leite
em leito
eras de
estrela a
tua boca
via láctea
refletida
pelos
satélites
e eu
vestida
pela
nudez
descobri
a pele do
universo
RITOS FINAIS
Lerei o poema que a autora dedicou a mim, guardei-o para o final, mesmo sendo dos Ritos Iniciais, para evitar que a emoção me impedisse de continuar a apresentação.
Leio, então, Educadora.
educadora
a Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos
és toró que
tora as
rachaduras
nuvem no ser:tão
– mar
empatia no olhar
transconvivência
pura
pós-tortura
vento de
dezembro
em cajazeiras
és mãe, ensinas
tua alma:
mariana menina
Agora, posso dizer que nos Ritos Finais, a autora no canto direito da página escreve uma única sagrada palavra e um ponto, concluindo de modo quase abrupto, e por isso mesmo belamente, pois desnecessário seria qualquer outro complemento nesta parte do ritual.
Amém.
Assim seja, digo também eu.
Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos possui Graduação em Licenciatura em Psicologia (UFPB,1989) e Formação de Psicólogo (UFPB, 1990), Mestrado em Psicologia Social (UFPB, 1995), Formação de Terapeutas em Análise Bioenergética (Comunidade-Escola Libertas, 2002), Doutorado em Letras – Teoria da Literatura (UFPE, 2007), Pós-Doutorado em Teoria da Literatura (UFPE, 2017). Atualmente é Professora Associada III do Centro de Educação e Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras (CCHLA) da Universidade Federal da Paraíba.
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