por Iza Maria de Oliveira
Psicanalista, cronista
Este texto não é exatamente uma resenha sobre um livro. Talvez, um livro de poesia seja quase impossível de resenhar-se, mesmo que contenha um convite ao leitor para percorrer, lentamente, O Sul de Lugar Nenhum, de Marcelo Frota (Ed. Penalux, 2019). Seguem aqui algumas notas, anotações, ressonâncias dessa obra cuja suavidade da diagramação é um belo convite.
Naquela tardinha de uma chuva amena de um inverso sulino, durante o lançamento de seu livro, em poucas, mas precisas palavras, como a poesia requer, Marcelo Frota se dirigiu aos presentes. Comentou, então, que um poeta moçambicano o encontrou através de uma rede social, dizendo que leu seus poemas, relatando a tragédia recente em Moçambique e da presença de Mia Couto nessa causa. Marcelo se comoveu, pois a poesia ligava dois continentes. Logo em seguida, o dono da livraria refere-se a uma reportagem sobre um homem que jogou uma garrafa no mar com um bilhete; dez anos depois, uma mulher encontrou o objeto que se fez palavra num encontro entre dois continentes. A geografia das palavras se evidencia nessas passagens. O Sul de Lugar Nenhum é uma obra também sobre isso. Como inventar um sul, um ponto de referência quando não se tem um lugar?
Ao cumprimentar o poeta Marcelo Frota, o parabenizo pelo ato de coragem. Ele “é um ato de resistência”. Retornar para casa com seu livro é, também, vir acompanhada por essa frase que ressoa como uma alucinação que pede conexão para acalmá-la. Um ato de resistência.
Folheando as páginas, percorrendo as linhas, aos poucos, algumas conexões se estabelecem.
Ser poeta nos nossos dias é sobreviver para além da lógica neoliberal em que toda produção deve se tornar produto consumido, devorado, lucrado. Produzir poesia é um ato de resistência à lógica econômica desses nossos tempos. Escrever poesia é uma resistência à morte da objetalização da vida.
Cada poema do “Sul de Lugar Nenhum” é uma resistência a toda forma de morte do que nos pulsa à vida: coloca palavras na dor, na solidão, nos desencontros, nos dilaceramentos. Se esse Real não cessa de não se inscrever, brilhante enunciado de Lacan, a poesia é uma forma de escrever inscrevendo o que poderíamos querer estancar pela sua insuportabilidade.
O livro abre com o poema “O sul (de lugar nenhum)”, e encerra com “Sonhar ao sul (de lugar nenhum)”. Legado de um ato de resistência, de uma travessia corajosa. Poeticamente, colocar palavras onde seriam vazios desterritorializantes, desestruturantes. As palavras nos orientam, ligam pontos cardeais no mapa de uma existência. Marcelo produz palavras que guiam e ligam continentes psíquicos, fazendo sonhar. Um ato de resistência à morte que habita em todos nós.
Obrigado, Iza. Sou muito agradecido pelas palavras que nos empresta.
Não sei se sou poeta, escritor, ou qualquer denominação que se dá a um ser escrevente. Eu nunca almejei ganhar dinheiro com poesia, apenas transmuto sentimentos do peito para as telas (sou desprovido do papel, órfão de livro editado). Se eu fosse tentar fazer grana com literatura, tentaria escrever um romance de acordo com o gosto popular ou das editoras.
Somos a resistência à opressão que nos comprime contra a parede que se move contra nós. Se viveremos, não sei. Só sei que continuaremos a lutar.
P.S.: Obrigado, equipe Literatura e Fechadura por nos proporcionar este espaço.