1.
Terrível, o sopro dos deuses na nuca. O frio,
como sensação primeva de quem desperta
em abrupta e eterna queda.
Princípio e fim misturando-se em novelo.
Corpo que irrompe da carne como uma primavera.
Um grito prolongado
em aceleração súbita para o abismo.
Porque o amor é uma casa abandonada
de que conhecerás as ruínas.
2.
O abrir os olhos e ser ente cósmico. Boca escancarada
para absorver o mundo nas suas dilatações indefinidas
e chamar Mãe a esse afogamento sucessivo.
Íris luminescente do Ser que aprende o Mundo
ou Mundo aprendendo o Ser como coisa inseparável,
redolente, frágil,
sem que um possa existir sem o outro, num amor de parasitas,
ternura comensal. Corpo que aprende a tarefa de consumir,
o canibalismo amoroso, a ternura autofágica.
3.
Passos em súbita aceleração
ou aceleração súbita para alcançar os passos.
Um corpo. Uma alma que insiste na fuga.
Ensaio de pedra em queda constante; precipitada.
Braços que te erguem no céu como uma loucura.
Pessoas-árvores, sem raiz, de que conhecerás os sulcos,
o Outono, triste e decadente. Porque és ainda o que virá,
a semente do amanhã: a imortalidade a prazo.
Servo de um suspiro ou de uma chama sem nome,
talvez não pertencesses ao plano cósmico.
Interrompeste Deus com a tua existência sem ramos,
com o teu sexo, em riste,
a ameaçar a ordem. Com o teu riso,
como um falo erecto a prometer descendência.
Prole que não sairá da carne
mas se consome na suposição, na possibilidade de tudo destruir.
Quero ascender ao paraíso para derrubar estátuas,
rasgar livros, arrasar templos
e, depois,
regressar impoluto à dúvida.
Rui Xerez de Sousa
1979, Évora, Portugal.
Publicações:
– “História de um assassino vulgar e outras peças” (teatro), Angelus Novus, 2002.
– “Ao Ouvido do Diabo” (poesia), Companhia das Ilhas, 2018.
– “Frente à minha televisão sou eu o imperador” (teatro), Companhia de Teatro Lendias d’Encantar/Folha de Medronho, 2019.
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