Diálogo na guerra
para Tarso de Melo
(1)
será que indo até a esquina,
tenho a infelicidade de me deparar
com toda a violência
demonstrada na tv?
o sol, nesta época do ano é muito
pouco, mas ainda há e,
além da rua vazia e uma ou
outra pessoa também vazia,
chego ao ponto do ônibus ileso,
sem sofrer qualquer arranhão
(2)
leio um poema que me
estarrece, leio outro poema:
e este, lindo, lindo, lindo
me arrebata
o poema fala de árvore,
fala de furadeira, dos versos:
vidas que ali poderiam existir
e fazer morada no âmago
daquela árvore,
se bem me lembro, era isso:
livros que poderiam ter
sido escritos e tudo mais, não
fossem o oco, a furadeira
(3)
a dor e o impacto
que um furo causado
por uma furadeira
em uma arvore
provocam:
talvez sejam impossíveis de
dizer em verso
(4)
o poema e a sua generosidade de
nos envolver, atingir nossas
emoções e sensações, transformando,
modificando o que pensamos
e sentimos
(5)
penso: como um poema
pode possuir essa imensa
capacidade
de nos deslocar?
(6)
agora na tv outra
transmissão de bosta: um
barco à deriva com refugiados
em que o mundo todo
faz questão de ignorar: (e – um
adendo apenas), seguimos
tão na contramão das
coisa, que até as inúmeras
formas de amar e de amor
são rechaçadas
(7)
será mesmo que temos
que aceitar, que assistir toda essa
podridão, esse monturo, estupidez,
digerir tudo que nos empurram,
incólumes, resignados?
(8)
aqui enquanto tudo parece
se mostrar, se colocar como
dentro da normalidade, do
compreensível, aceitável
: sigo, vasculho, investigo, caço,
cavo sempre em busca de uma
outra árvore outro poema
Desejo
um livro sempre pede outro livro
uma música sempre pede outra música
como também, realizado, um sonho
sempre pede outro sonho
um desejo chama sempre por outro desejo
todos os pensamentos e o que se quer
um poema, no seu perfil incerto e caligráfico
já sonha outra forma, outro poema
o primeiro passo requer sempre
o passo seguinte
como todas as manhãs sempre
pedem outras manhãs
um pôr-do-sol, um iluminado dia
um momento inesquecível
tudo que se satura e o que ficou para trás
um sentimento e o sentido das coisas
como o amor que sempre pede
sempre mais amor
tudo que aqui está e o que segue – e, também
a vida, que sempre pede tudo de novo
Um homem de bem
tenho me entregado
demais à vida
acordado cedo, ido ao trabalho
evitado situações de
constrangimentos
procurado seguir com cuidado
me esquivado das tretas
confusões
esperado em filas dos supermercados
(sem reclamar)
honrado meus compromissos
saldado em dia as contas
e dívidas
educadamente seguido
ao guichê sugerido
me comportado de acordo
com as normas do bom comportamento
não tenho envergonhado
ninguém
nem a mim mesmo
na rua, procuro estar sempre
simpático e desejar bons-dias
não me aborrecer por motivo
fútil ou banal
me esforçado para
permanecer sempre correto
assim tenho feito
da forma como mais gostam
Hélio Neri, nasceu em Santo André (SP), em 1973, é Poeta Cabeleireiro/Barbeiro, publicou os livros, “Anomalia” (2007), “Palavra Insubordinada” (2011), Alpharrabio Edições. “Bandido” (2014), Oitava Rima Editora, “Anestesia” (2016), Editora Córrego. “Sessões diárias e outros poemas” (2018), Editora Fractal.
Participou das antologias “Poesia Contemporânea Brasil e México” (2012), Cielo Aberto, Antologia Poética “É que os Hussardos chegam hoje” (2014), Editora Patuá. “5 Saraus: Cada um com sua poesia, cada um com sua fúria” (2015) Imprensa Oficial.
Organizou, junto com Jairo Costa, Antologia, “Poemas para ler nas Ocupas” (2016), Editora Estranhos Atratores.
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