“com o fogo ancestral da tua fé” – Três poemas de Edelson Nagues

 

Edelson Nagues é natural de Rondonópolis/MT e radicado em Brasília/DF.
Premiado em vários concursos literários, tem textos publicados em antologias impressas e em blogs e revistas digitais, como: Mallarmargens, Musa Rara, Germina, Zunái, Literatura & Fechadura, Samizdat, Ruído Manifesto, Portal Vermelho, entre outros. Publicou, pela Editora Scortecci, em 2012, os livros Humanos, de contos, e Águas de clausura, de poesia (vencedor do X Prêmio Literário Livraria Asabeça), e pela Editora Patuá, Palavras para estrangular silêncios, de poesia (2019). É coautor do CD Anand Rao musica poemas de Edelson Nagues (2013) e organizador da coletânea Respeitável público: histórias de circo e outras tragédias (Editora Penalux, 2015).

 

 

 

Canto para um menestrel

                               Para Elomar Figueira Mello

É deveras vasto esse sertão
que se revela em teus palimpsestos,
com esse povo que tu cantas,
no limiar do signo da terra
— pó e barro, visagem ao sol:
serpente a engolir o próprio rabo.

Canto demiurgo: ave de prata
moldada na intenção do voo,
em um movimento intrínseco,
por entre ruínas e castelos
que a litania aviva na memória,
com o fogo ancestral da tua fé.

Neste instante, em meio à agonia,
busco, assim, o Brasil profundo,
que se alheou de si e de nós.
Na ferrugem — pátina do chão —,
sob os cascos duros dos carneiros,
que não sabem dos homens perdidos.

Um país e seu povo imanente
a emergirem das águas, em teus rios,
forjados na quimera atemporal
[num tempo, então, eclesiástico,
marcado no chapéu, em tua fronte],
raiz deste teu arcadismo cristão.

Enquanto esse cantar me trespassa,
alhures, a cidade se enreda
na algaravia de palavras ocas,
em ladainhas, rituais e mitos,
nos miasmas, entre ruas e becos,
que seduzem os homens perdidos.

Menestrel de fímbrias e de teias,
quisera contigo fazer um pacto,
com o sangue arrancado ao golpe
do espinho do mandacaru;
segredar temores, ao abrigo da arte,
com esperança: palavra-pão.

Em galope, num arranjo de cordas,
atravessar, veloz, este deserto.
E recriar outro país [o mesmo],
na pulsação do nosso povo de antes,
redivivo em notas e compassos
que irmanassem os homens perdidos.

 

 

Entrevisão

Era de manhã, por certo,
embora houvesse sono,
desalento e cansaço.
Nos olhos semicerrados,
fuligem acumulada.

Um tipo de fogo-fátuo
atravessava a janela
dos olhos, sem gelosia,
a calcinar todo o medo
convertido em vertigem.

O aço fendia as têmporas,
que entornavam espantos
coagulados de eras.
Era o momento exato
para extirpar o passado.

O lençol do silêncio
cobria cabeças pensas.
Na memória obliterada,
tais imagens se fundiam
sob a neblina espessa.

Não havia paralelos,
nem retas ou azimutes.
Apenas um farfalhar
de folhas, talvez de asas,
indicava o caminho.

E eu, assim, à mercê
daqueles vultos soturnos,
entre os quais, disfarçado,
o algoz me espreitava.
Tudo isso eu entrevia.

 

 

***

Se bomba
                             o poema
se míssil
                             a estrofe
se revólver
                             o verso
se granada
                             a palavra
se lâmina
                              a sílaba
se bala
                              a letra

 

 

Se ódio
                               o hiato
se vingança
                               a vírgula
se demência
                               a semântica
se anátema
                               a metáfora
se fanático
                               o paradoxo
se cadáver
                               a linguaviva

 

 

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This Article Has 1 Comment
  1. Roberto Monteiro Reply

    Muito bom. Valeu a todos… de fechaduras a literaturas que desprendem os vieses que nos assolam e solapam nossa realidade.

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