Fernando Andrade entrevista a poeta Celina Ishikawa

 

 

FERNANDO – Relações de distância e proximidade das palavras nos seus poemas me parecem que provocam colisões de sentidos. Com se fosse um parto de ideias, muito pelo absurdo, e um senso estético sobre a arte de expressão. Fale disso.

CELINA – Fico feliz que meus poemas despertem essa percepção. Acredito que uma certa desorientação, na medida, prende mais a atenção na leitura e cria um ambiente interno no leitor propício para receber ideias disruptivas. Não que essas ideias sejam estranhas a ele, leitor, mas que precisam ser escavadas dos escombros dos pensamentos automáticos e possam ser alcançadas no que tem de mais constitutivo. Daí essa que você chama de colisão de sentidos, muito intencional em minha escrita como escolha estética, para completar meu objetivo de levar o leitor a sentir, mais do que receber. E porque almejo retirar o leitor de uma apreciação rotineira para um sentir agudo, que o absurdo serve no que causa de estranhamento e desconcerto.
Nos poemas, o eu-lírico está despido e é preciso que o leitor receba essa nudez e crueza com os pés fora do chão cotidiano, fazer com que ele não procure mais por figuras ou narrativas numa pintura abstrata. Mas o choque de sentidos não cabe aqui apenas como ferramenta, mas como uma busca em levar o que você chamou de arte de expressão a um tear de novas texturas, novas sonoridades, novas formas de contato com o leitor, não mais pelo acúmulo de informações, mas por envolve-lo em sensações que por serem desconfortáveis se tornam intrigantes, deixando-o curioso sobre o centro mais profundo que procuro apresentar em cada um dos meus poemas. O leitor não precisa aqui, entender, mas sim, entrar em reverberação.

 

FERNANDO –  Aparece um fluxo de consciência no seu livro muito proximo à Beckett. Como você projetou esta linguagem que beira um homem em desespero ou uma polissemia do caos?

CELINA – Samuel Beckett é uma influência que se tornou constitutiva em mim. Embora eu tenha lido poucos dos seus títulos, sua escrita, onde vale mais a intenção de tocar no leitor/espectador uma corda muito íntima e inesperada, foi de grande afinidade à minha própria busca de expressão, especialmente no caso dos poemas de SURTO BRUTO SILENCIOSO, onde o eu- lírico estava mergulhado no paradoxo de vida-morte: seguir a vida carregando mortes ao seu redor, diante de presenças passadas e da necessidade de se reconstituir dentro das possibilidades psíquicas que essa devastação determina. A linguagem do caos interior, guiou as manifestações poéticas, na tentativa de expressar esse desespero a que você se refere, porém sem uso do recurso da narrativa. Minha busca é sempre a de adentrar à sensação, ao sensorial dos acontecimentos emocionais, quase como numa pintura impressionista. E sendo sensorial, a linguagem deve ser polissêmica, pois tenta dar conta dos vários tempoespaços da emoção, como numa pintura cubista. Assim, ao ter como raiz de meus poemas tais estados emocionais “puros” ou “absolutos” que se estendam de forma não linear como fios em vibração aos sentidos do leitor (como os rizomas de Gilles Deleuze), as estratégias criadas por Samuel Beckett são ferramentas perfeitas para estabelecer um ambiente envolvente mesmo que repleto de vazios, pois assim é nossa condição tanto física (somos formados mais por vazios do que por matéria) como psíquica (vazios da solidão inerente ao indivíduo). O caos a que se refere é para mim como autora, a multiplicidade de estados mentais que acarretam respostas emocionais aos acontecimentos concretos e imediatos: perda, dor, incerteza, imprevisibilidade, euforia, culpa ou paralisia. E Beckett trata esses estados mentais a partir da impossibilidade da linguagem, perfurando suas limitações para abrir espaço à manifestação daquilo que não é reproduzível e incontornável, porque dar contorno é limitar e é inevitável no sentir. O que busco em meus poemas não é compartilhar, mas sim que o leitor mergulhe sem temor nos próprios medos e fraquezas, para quem sabe, se tornar mais humano.

 

FERNANDO – A lírica dos seus versos se dá muito mais pelo trabalho da linguagem/sentido do que pelo som ou musicalidade das palavras versejadas. Você concorda ou não e por quê?

CELINA – Talvez ao leitor, o que chame atenção seja o trabalho acabado de linguagem x sentido mas na sua estruturação, o que me guia é criar uma musicalidade particular, me servindo da linguagem para fazer explodir minha intenção de estabelecer um sentido específico ao todo do poema. Palavras são testadas e muitas vezes descartadas, caso sua musicalidade não atenda a meu intento, mas quando são escolhidas, estão sempre a serviço único de construir na leitura um bloco de sensação inevitável e fundo, que arraste o leitor às suas próprias entranhas sem aviso.
Minha musicalidade é intrínseca, soa como um hipnótico ruído de fundo, onde enredo meu leitor até desarmá-lo de uma aproximação racional aos poemas, para que ele possa entrar em contato com o que há de mais fundante nos conceitos que abordo.

 

FERNANDO – Há uma busca pela interioridade das coisas e dos nomes em seus poemas. Como produz esta latência no seu trabalho poético?

CELINA – Cada um dos poemas de SURTO BRUTO SILENCIOSO nasceu de um incômodo, uma angústia que se manifestou em minha própria interioridade e na coragem de retê-las até que encontrasse uma linguagem que desse conta de sua manifestação concreta, tendo sempre o cuidado de não tornar essa concretude uma interpretação particular. As coisas e seus nomes são afastamentos da subjetividade e da amplitude de conceitos inerentes a essa subjetividade, são classificatórias, são moralizantes. Assim, procuro a verticalidade das coisas e nomes ou até mesmo, prescindir deles, para reconstituir a possibilidade de uma emoção ser expressa ainda sem forma, sem definição, sem percepção consciente, como um vento inesperado e para isso é preciso que a linguagem seja também capaz de criar indefinições sem se perder do motivo inicial, aproveitando das suas próprias falhas para criar espaços a serem ocupados no e pelo leitor. Escrevo meus poemas para serem faíscas que se tornarão fogueiras no leitor.

 

 

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