ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor Jozias Benedicto

 

Jozias Benedicto escritor - ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor Jozias Benedicto

FERNANDO Seu livro tem uma interessante mistura de vozes entre a primeira pessoa e a terceira pessoa. Dentro de um viés confessional, há uma (des)normatização de gêneros tanto da sexualidade como literários. Como foi este embaralhamento de personas narrativas?

JOZIAS – Esta mistura aparece já no título, no “erotiscências”, a primeira palavra do livro que surgiu para mim em um sonho: uma mistura de reminiscências + eróticas (o que seria este viés confessional que você aponta) mas que logo é quebrado pelo “embustes” – palavra que diz ao leitor que “nem tudo é verdade”: parecem confissões mas podem ser tão somente ficções. Vejo os embustes como uma metáfora para o trabalho do escritor que, como um malabarista incansável, está sempre tornando real a fantasia, ao mesmo tempo que deixa claro que é tudo um jogo.

O escritor – ou, de uma maneira mais ampla, o artista – e eu além de escritor/poeta sou artista visual – está continuamente se equilibrando entre o real e a ilusão, entre a forma e o conteúdo. Daí vem esta brincadeira que faço entre gêneros: meus textos são poesias mas têm enredos, alguns deles podem ser lidos como se fossem contos, já em outros a narrativa é desconstruída pela irrupção do delírio, do lírico.

Também brinco de subverter as formas clássicas, escrevo sonetos me apropriando de versos de poetas pré-modernos – são “os ardis que faço/para esquartejar a última flor do Lácio”. E ainda esta sexualidade que teima em sair fora de categorizações (“naquela época era elegante, isso de dizer ‘sou bi’ ”), o que tem muito a ver com uma sexualidade lúdica, infantil, do perverso polimorfo.

 

FERNANDO A sexualidade no seu livro é tão entranhada na hibridização dos textos entre prosa e poesia, e torna ainda mais bacana esta indistinção ente o que é falso/factual no seu livro. Ao mesmo tempo, ele é dividido em seções que se repetem, como catálogos que dariam uma ideia de classificação ou rótulos. Fale disso.

JOZIAS – Estas “reminiscências + eróticas” temperadas pelos “embustes” são para mim como lembranças de um paraíso perdido, vivido ou imaginado, onde o perverso polimorfo reinava, solitário e autocentrado. Fujo do padrão do texto erótico/pornô, dos supermachos e das superfêmeas sempre bonitos e felizes e inodoros; é um erotismo “natural”, quase prosaico, mesmo quando deságua em tragédias e desespero ou em tristeza e melancolia. Às vezes penso que desavisados compradores do livro vão me denunciar ao Procon: “na capa diz que são poemas eróticos, mas cadê a excitação?”, pois a viagem dos meus poemas é outra, é um erotismo sutil e irônico que não se esgota com o clímax, é gozo e é antes e além do gozo. Como escreveu no prefácio o poeta Félix Alberto Lima, “não é uma receita de erotismo urbano, da posologia de prateleira do sex-shop. É o corte não-linear na própria carne do autor.”

A divisão do livro em seções, esta organização enciclopédica, vem da criança que começa a entender o mundo e para melhor entendê-lo vai encaixando tudo em categorias, que são como os volumes do Thesouro da Juventude (a leitura de minha infância de menino de classe média nos meados do século XX), que se dividiam em “livros”: o Livro dos Porquês, o Livro das Boas Acções, o Livro de Nossa Vida…

Outro aspecto importante é o que vou pedir emprestado ao Georges Perec, aos franceses do OuLiPo, ao Marcel Duchamp: a obra de arte criada a partir de procedimentos formais arbitrários, combinatórios, de regras, dos ready-made. São os sonetos da minha “máquina de poesia”, que são “montados”, segundo alguma regra pré-definida, com versos que vêm de uma proposta de, durante 999 dias, a cada dia escrever um verso e fazer um desenho.

Para o perverso polimorfo é parte importante do aprendizado, da internalização da realidade: colecionar, organizar, combinar, catalogar – e assim vejo meus poemas neste livro como cadernos de um colecionador, só que não de selos e sim de vida.

 

FERNANDOPensei no seu livro como um álbum sonoro, quase um vinil conceitual, onde há uma forte costura por referencialidade tanto na forma como nos temas. Você é viciado por cultura POP? E como os elementos do cinema, da música e da literatura te auxiliaram neste fraseado poético e caleidoscópico?

JOZIAS –  Quando os Beatles lançaram Sgt. Pepper ´s atualizaram a definição do que era um disco, que deixou de ser uma mera sequência de músicas, de hits, para se transformar em um álbum, baseado em um conceito, que extrapola do sonoro para o visual – capa, encartes – e até cênico e performático – trajes dos músicos, cenografia dos shows etc.

Isto significa uma narrativa, mesmo que não-sequencial, uma edição, uma visão de conjunto, um projeto. É um procedimento que veio do cinema para a música, e que hoje meio que se diluiu com o streaming, ou talvez tenha se democratizado, cada um monta seu próprio álbum em suas playlists.

Neste aspecto o meu trabalho pode ser visto como um vinil conceitual, como você coloca; e não só na minha poesia, já nos livros de contos eu persigo isso. Tenho personagens que estão em um conto e reaparecem em outros, ou há a sugestão de que um personagem de uma história possa ser (ou não) o personagem de outra. Um exemplo é uma dentista, que é protagonista de um conto do “Estranhas criaturas noturnas” e que volta e meia irrompe em outro conto daquele livro ou de outro livro, mas sempre deixando a dúvida, será a “mesma” dentista ou não?

No “Erotiscências & embustes”, além das histórias que se contam em uma sequência de poesias (que eu propositadamente coloquei uma após a outra, como é o caso da historinha da “Sally”, quebrada em três partes), há os poemas/temas que se “espalham” pelo livro (os Valongo, os Azulejos de São Luís) e que também tem links para os livros de contos. Vejo como se eu não estivesse escrevendo contos, poemas, livros e sim um grande hipertexto.

Ao montar este quebra-cabeça, definir o que vem antes do que, me utilizei de minha vivência como editor (de livros, de vídeos) e curador (de artes visuais) mas também como fanático por cultura – tanto a chamada alta cultura, as óperas, a literatura, os concertos, os balés, os filmes da nouvelle-vague, do Glauber, do Godard – mas muito também da “baixa cultura”, do POP, álbuns de rock progressivo, filmes musicais, séries, HQ, vídeos pornôs – e aí entra tudo ao mesmo tempo agora, até mesmo o kitsch e a escatologia. Sim, e leituras, muitas leituras, o tempo todo.

 

FERNANDO O corpo é um elemento forte nos seu poemas/contos. Um corpo biológico, perecível, mas também de certa forma projetivo pelo desejo e pela alteridade. Como você vê o corpo numa obra como a sua?

JOZIAS  – Meu narrador a maior parte das vezes é um adulto que vê as coisas com o olhar da memória, das reminiscências, e revela que por baixo do adulto ainda habita, pulsante, uma criança olhando o mundo com o olhar do espanto, e seu corpo é como medida para todas as coisas.

No poema O memorioso, que inicia o livro, faço referencia ao Funes, personagem do Borges, e este poema funciona como se fosse um introito, como um aviso ao leitor sobre quem é este meu narrador: alguém que já perdeu muito com o passar do tempo, que caminha rumo à decrepitude e à morte e que está reduzido às lembranças, mas cujas memórias são tão vivas “feito um depósito de lixo – atômico”.

As palavras finais não são as do poema que encerra o livro, nomeado como posfácio,fiz como naqueles filmes nos quais a trama aparentemente se encerra com a música do THE END mas, durante os letreiros, para os espectadores que permanecem na sala de projeção, há uma outra historinha que pode dar novo significado à trama. As palavras finais do Erotiscências & embustes repetem o que sempre reitero nos meus livros: “nunca é demais repetir: é tudo ficção” – mesmo que tudo seja real.

 

 

http://editoraurutau.com.br/titulo/eroticencias-e-embustes

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