O sublime através do ritmo do coração
Em Mikrokosmos opus 5 Diego Andrade de Carvalho transforma temas musicais elevados em ritmos próprios, buscando alcançar o sublime.
Já no primeiro poema temos o mote que guiará a leitura: “se, essa ária fosse minha, eu cantava e mandava rabiscar, com saltinhos, com saltinhos de arpejo, para o meu, para o meu verbo passar.”
Há por todo o livro referências a compositores, técnicas musicais, e musicalidade na sonoridade, no ritmo dos versos. Os poemas caminham entre o simples e o sublime, propõem tornar a música erudita, às vezes inacessível, próxima e íntima. Os versos proclamam que algo “estrangeiro aos ouvidos” é “ainda assim, estranhamente familiar ao íntimo.” O poeta fala, por exemplo, de um Japão dourado, e logo a seguir de si, com um pão imundo de duas fatias de queijo prato.
Para ilustrar todos estes aspectos, me aproprio rapidamente de uma outra linguagem, a do cinema, assim como os poemas de Diego pretendem se apropriar da linguagem musical. No filme “Minha amada imortal”, por exemplo, Beethoven, interpretado por Gary Oldman, explica a outro personagem suas composições extremamente familiares mas, de certa forma, inacessíveis ao último.
Ensina que a música conduz à mente do compositor, que através das notas musicais o ouvinte é colocado junto aos pensamentos que originaram as notas. Na cena em que Beethoven toca Moonlight Sonata temos uma noção do que isso significa. Beethoven, devido à surdez está com a cabeça encostada ao piano. Pode-se entender, claro, que a música está colada ao ouvido. De maneira mais profunda, que está próxima a sua mente. Pode-se entender, contudo, nessa cena tocante, que o piano, à altura do seu coração, o substitui, conecta todo o corpo do compositor ao piano tornando pessoa e piano uma coisa só. O piano parece vivo, e nesse sentido, pode bombear as notas musicais dos dedos de Beethoven à sua mente. Com as emoções codificadas, as notas musicais circulam de volta aos dedos, depois retornam ao coração-piano e assim sucessivamente.
A música nos dá acesso à mente do personagem como nos informara, mas também, e na mesma medida, a seu coração.
Mikrokosmos opus 5 usa um processo parecido. É às batidas do coração do poeta, contudo, a que primeiro temos acesso, depois à música sublime. Através do ritmo do coração, acessamos as inquietações do poeta. Esse coração se aproxima de tantos outros que batem juntos, como se o poeta abaixasse a cabeça junto ao peito dos compositores, (cujas inquietações se aproximam daquelas das pessoas “comuns”), mas também junto ao peito de pessoas comuns, das mais variadas pessoas, para ouvir, como afirma em seus versos, a música “ do povo que todo dia canta e que não se escuta”, ouvindo assim o ritmo de seus corações. Ouvindo diferentes ritmos, o poeta chega a uma linguagem comum, a uma música comum (quase cotidiana), à soma de todas.
O poeta afirma nesses belos versos: “o Sublime sempre está no humilde, no simples”. E arremata sobre um pássaro morto: “por fim, o enterrei em meu quintal, para que no dia de minha queda, de mim os pássaros tomassem parte e me levassem, para sempre em seu peito, não como um humano, mas como aquele que também sentiu, o Sublime de suas asas, de suas vidas”. A música que Diego produz através dos versos é, portanto, uma música cotidiana e ao mesmo tempo elevada, busca o que a música erudita possui em sua linguagem e em sua estrutura: diversos temas, instrumentos, músicos, (ou seja, diversos microcosmos) para traduzir algo do cosmos, do Universo.
Rafael de Oliveira Fernandes nasceu em São Paulo em 1981, é formado em Direito pela USP, escritor, autor dos livros de poesia Menino no Telhado, 2011, ed. 7letras, Cadernos de Espiral, 2014, ed. 7letras, e do romance Vista parcial do Tejo, 2018, ed. Patuá.
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