ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor Cefas Carvalho

 

cefas carvalho - ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor Cefas Carvalho

 

 

FERNANDO – Para cada conto seu, por mais que o universo seja tão distinto, o desejo às vezes associado à uma falta, uma lacuna, de certa forma move os seus personagens. E você usa uma citação de um verso da banda The Smiths, que criou no público todo um arquétipo de histórias de amor. Há uma narrativa aí juntado seus textos e a estética daquelas bandas memoráveis?

Em relação a ausência de algo, o desejo de buscar isso que falta, a lacuna citada, creio ser uma dos temas mais importantes a serem abordados por um escritor, e de certa forma é uma constante na Literatura. Romeu e Julieta e Dom Quixote buscavam o amor, Hamlet buscava a verdade, assim como Bentinho em Dom Casmurro. Não foi algo proposital, posto que os contos foram escritos no decorrer dos anos e em contextos literários e de vida bem distintos. Mas, há, sim, um a possível unidade justamente neste leitmotiv, da busca por algo. Em relação às bandas pop-rock inglesas dos anos 80/90, elas me influenciaram muito, em termos estéticos e ideológicos, isso acabou refletindo em alguns textos e mesmo romances. A propósito, tenho material inédito – romance experimental – que é a tradução de uma canção da banda The Cure, também inglesa como The Smiths. Mas, aí é um projeto para 2021 ou 2022.

 

FERNANDO –  Você é um dos poucos narradores, em exercício, que sabem precisar o tempo de um conto, de uma narrativa. Não há desperdício de tempo, nem de palavras. E seus finais parecem universos à parte dentro do enredo. Ao mesmo tempo coesos com o resto, mais trazendo certa originalidade poética. Você pensa no percurso do conto enquanto o está escrevendo?

Sim. Via de regra começo o conto sabendo exatamente qual o final e como será o andamento da narrativa, me cabendo, portanto, “rechear” o texto final, a parte conhecida como transpiração e não inspiração. Nesse processo me esforço para, efetivamente, não pecar pelo excesso de palavras e fazer a carpintaria tão pregada por Hemingway. Cortar mais palavras do que acrescentar, em casa revisão. Registro também que no processo de alguns romances meus, comecei a escrita sabendo exatamente como seria a cena final. No caso de “Carla Lescaut”, de 2015, homenagem a “Manon Lescaut”, escrito pelo Abade Prevóst no século 18, comecei o romance já tendo a frase final que fecha o livro.
Muitos contos foram escritos com este mesmo norte. Claro que há processos em que a magia está na surpresa, como foi o caso do romance “Combustão”, escrito a quatro mãos com a poeta e escritora Jeanne Araújo, na qual ela criava a voz da personagem feminina e eu a masculina e um não sabia o que o outro escreveria, portanto, um processo feito de surpresas e armadilhas a cada página. Mas, claro que nem todo processo deve e pode ser dessa maneira. Tenho a alma com tendência para a disciplina de Flaubert e a organização sistemática quase obsesssiva, portanto, não deixo essas características se perderem e as aproveito para produzir.

 

FERNANDO – Qual é o teu mapa da fantasia? você acha a fantasia um pontapé inicial para um conto? Apesar de seus contos serem tão abrangentes, noto uma certa particularidade na sua imaginação. Estou errado?

A fantasia é como o processo do Iceberg tão citado por Hemingway, que o que sustenta o terço do Iceberg que vemos são os dois terços invisíveis embaixo do mar. Então, a fantasia está em algum lugar lá dentro, impreciso, indecifrável, misterioso, que por vezes vem à tona, na solidão em frente ao notebook, em um bar ou no supermercado. Muitos contos surgem com este insight, a fantasia vindo de repente, e a partir daí o processo ganha ares cerebrais e é necessário a técnica para dar conta de reproduzir com alguma exatidão aquele pontapé inicial que os deuses e deusas das letras nos deram. Quanto a particularidade da minha imaginação, sem dúvida há algumas obsessões, como diria Borges, entre elas, a perda, a busca, a música interagindo com os personagens, uma possível quebra das leis estabelecidas, seja no racional (como em “Café frio”) ou na fantasia pura e simples (“Asas” ou “Fome”).

 

FERNANDO –  Você desenvolve muito um trabalho de Gêneros. São contos que podem abarcar muitos espectros de estilos literários: formas de narrar. Como foi amarrar tantos estilos numa certa unidade formal?

Como eu disse, os contos foram escritos no espaço de quase uma década e ao reuni-los para o livro temi que pudesse ficar como uma colcha de retalhos, uma espécie de criatura de Frankenstein. Mas, com os contos na ordem que intuitivamente eu desejei e com várias releituras, vi que, se não havia no conjunto uma unidade propriamente dita, havia uma espécie de fio condutor, um mínimo de unidade que permitiria ao leitor pular de um para outro sem maiores estranhamentos. Sim, os gêneros são diferentes de maneira geral há contos longos narrados á moda clássica, outros quase minicontos. Um dos contos preferidos, “Fio de azeite” é simplesmente um diálogo, não há qualquer descrição de qualquer ação. Então, confiei na intuição para que o leitor acompanhasse as narrativas como em uma montanha russa, com emoção, mas sem medo de cair no abismo, embora, claro, o mecanismo sempre corra o risco de se quebrar sem que a gente perceba.

 

FERNANDO – Seus contos são uma forma parecida de você sentir sua vida afetiva com seus motes. Me parece lendo tanto seus romances quanto seus contos que há uma certa aproximação biográfica entre você e seus narradores. Não diria alter egos, algo mais sutil, uma espécie de mimetização. Fale disso.

Essa é sempre a pergunta mais delicada e difícil a se responder, possivelmente porque não há uma resposta clara, ou talvez existam várias respostas. Nos romances é mais fácil ver um protagonista alter ego, até porque, como Hemingway, tantas vezes aqui citado, como Sábato, como Garcia Marquez, escrevo romances com o mundo que conheço e alter egos que posso dominar (no meu caso e nos citados, os protagonistas sempre são homens de acordo com a idade dos escritores). Nos contos, esta regra se esfacela um pouco e me permito viajar por outros egos. Alguns contos tem a narrativa feminina em primeira pessoa (exercício pela qual sou apaixonado desde que li Moravia em “A romana” e “Desideria”) há um conto narrado por uma travesti. Enfim, pela natureza curta é possível, como diria Kundera, criar egos experimentais com menos riscos de derrapar do que na estrada de cem, duzentas páginas de um romance. A partir do momento em que decido escrever na primeira pessoa como uma pessoa LGBT, uma mulher, uma criança, aí, sim, acontece um processo de mimetismo para que eu não apenas escreva simulando essas pessoas, mas, que eu consiga ver o Mundo e a vida como elas. Como o processo de atores e atrizes que levam a profissão a sério. Viver ser o personagem, não apenas interpretar o personagem. Claro que há muito mais a dizer sobre personagens autobiográficos, mas, aí é um processo quase psicanalítico que talvez nem seja saudável para o fazer literário. Melhor deixar essa questão na caixa dos mistérios literários.

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