A arte põe olhos sobre o nosso corpo desvão. Olhos para olhar o entorno. Para enxergar um real de idades primevas. Absorção da primeira leitura, de como somos tato, teto e chão. A arte seria olhos para dentro, uma fina projeção entre internalidades e o externo-mundo. É como a retina de Platão; a caverna com sua luz-sombra, a projeção para a tela do mundo.
As neuroses familiares tendem a uniformizar dores, anseios e desejos. Há alguma identidade em um lar neurótico. Pois todos fazemos parte de um único recalque, não olhar sobre as camadas de\sobre si.
Quando escrevemos estamos soltos? Escrever seria soltar a linha do silêncio, mas ao mesmo tempo enovelá-lo, bola de lã ( vó-proteção). Quando estamos presos na teia familiar, o melhor seria a sublimação do afeto em lirismo ou lágrimas. E numa relação entre irmãs, as agruras do desejo e afeto muitas vezes parecem um camafeu de camuflagem onde uma ou outra adota postura mimética de esconder-se sobre a superfície em questão….
Um romance é feito de nós que às vezes podem ter a visão por trás do véu da cortina. Aquela visão encoberta. E exatamente disso que se trata o belo romance “Cara Marfiza,” editora Reformatório, do escritor e ator Paulo Salvetti. Numa família do interior não mencionado na geografia deste Brasil, a relação de duas irmãs desencontradas do que faz delas pertencidas dentro de um núcleo familiar. Marfiza, irmã da narradora, começa a enxergar só pelo filtro do preto e branco. Não nota e contorna a superfície das coisas com a nuance das cores. Na sua “deficiência” vê os outros na desrazão do certo e errado; bem e mal, sem nuances nas paletas das cores.
Prima pelo zelo em fazer o bem. E pelo filtro de certa regra de combate que o certo está sempre isento de culpa ou amoralidade que certa força centrípeta empuxará para outra irmã, esta que narra o novelo, que puxará fio a fio como uma hábil artesã da palavra, pois a palavra para narrar também serve de cura-(auto-cura). Como se deslindar do outro que quer apegar-se a sua vida? E neste percurso que o autor faz com extremo cuidado – o deslinde de duas personagens que parelham certas relações e que reforçam certos traços de corta-cola-colagem, que certos personagens criam para si com a aderência à persona do outro.
Paulo cria uma sinfonia de afetos ou silêncios matizados pela pulsão do (res)guardo. Para tanto a narradora pinta quadros e chega aos 70 anos fazendo telas, com cores sobre cores, matizando os afetos, com tons e sobre tons, tentando falar do passado das duas numa única cama ( da) de tinta. O que tem por baixo da tinta? Ela pretende fixar as duas numa posição (sentadas) cambiante de assentar o que deixou-se de poeira ou pó para debaixo do tapete.
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