FERNANDO – No teatro pegamos nosso corpo para o play ( jogo com o personagem) e é interessante – ou não – o distanciamento entre ator e personagem. No seu romance temos Francisco, narrador com uso de sua voz, de certa forma é também uma espécie de ensaio ou encenação?
Sobre o outro. Ao mesmo tempo a ambiguidade de um texto está nesta falta de classificação de usar\ ter gêneros, pessoas, lugares, marcações. Como você trabalhou esta questão de alteridade no seu livro, de colocar-se no lugar do outro?
BEATRIZ – Acho muito interessante a sua comparação com os jogos cênicos, com as ferramentas do universo do teatro, pois sou atriz e comecei a escrever um pouco depois de atuar.
No teatro, o ator empresta o seu corpo. Ele apaga a sua forma (ou a empresta) para que outra essência o habite. Tive a oportunidade de viver personagens fortes no palco e constatei que a emoção humana não cabe nesse frágil molde de carne que é não apenas o nosso corpo, mas também o modo como elaboramos o nosso sentir e o nosso pensar. Ao atuar e ao escrever há uma ruptura mágica (e também perigosa) dessas estruturas. E é maravilhoso esse transbordamento. Comecei a escrever quando não estava longe dos palcos num modo de dar vazão à esses seres que colaram ou abriram fissuras na atriz que sou.
Honestamente, o Anne B. não foi planejado. Foi um pulsar intenso e desse pulsar, uma febre que precisava produzir. Ele foi escrito sem estratégias e sem interrupções. E somente depois de pronto é que entendi o que ele queria dizer ou melhor ainda, sentir, pois mais uma vez, como atriz, acredito que o produzir sensível está além da nossa capacidade de elaboração e que a arte caminha por si só tomando apenas emprestado pelo caminho alguns avatares ou formas que a interprete.
Talvez por isso a ambiguidade dos personagens e a característica fluídica de suas personalidades.
FERNANDO – É incrível a sua habilidade de manter um fluxo constante de ação interior (como um pensamento – Fluxo de consciência) durante praticamente 100 páginas. Como fez para não perder a intensidade e a coerência textual do enredo?
BEATRIZ – Realmente foi um fluir muito fácil. Francisco é um personagem intenso, bordeline. É um homem que se sente medíocre diante da presença de uma mulher que ele considera um ser quase divino. E nessa relação homem-mulher-divindade, ele derrama nas páginas todo o seu pensar obsessivo. E claro que esse amor, esse desejo que ele sente por Anne é apenas um pano de fundo para que ele reflita e convide a refletir sobre a condição humana.
Francisco é um homem atormentado com as rupturas que Anne e sua literatura (ela também é escritora), provoca dentro dele e principalmente por ele não conseguir rasgar a sua forma externa de ser social que é.
É um homem atormentado pela própria condição de vilania e hipocrisia em que vive e se ressente com Anne por ele não conseguir a sua libertação.
Dentro da intensidade de emoções e até mesmo de violência que Francisco me trouxe, ficou fácil manter o ritmo. E confesso que o desfecho final me veio de repente, sem nenhum tipo de raciocínio lógico. Deixei correr os dedos sobre a derme desses personagens e à partir de daí também me tornei leitora deles.
FERNANDO – A violência da guerra é um ato que apaga a forma, tanto do corpo como da sua humanidade. O subtítulo do seu livro você usou o termo delicadeza. A voz narrativa se tratamos ela como um expressão formal do ego, o leve ou delicado, pincel da tinta ou seu matiz das coisas, funcionaria mais nesta intenção deste tom de narração?
O ego nos trai, nossa verdade também nos trai. Somos seres altamente expressivos. São muitos os rostos que nos representam.
O livro reflete sobre o quão delicado são esses arranjos que confeccionamos em torno do que somos seja para adequar-nos à uma regra ou para vivermos um sonho. Eu fiz o desenho da capa antes mesmo de terminar o livro, pois acredito que ele traduz esse constante fragmentar que somos.
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