FERNANDO – Qual foi a principal dificuldade que você teve em adotar um feto como um narrador? Ele está dentro do útero (quarto) encoberto pelo corpo da mãe. Esta visão encoberta lhe trouxe algum tipo de invenção-criação sob o ponto de vista literal, e até figurado do narrador?
ADRIANA – O narrador feto foi a opção depois de várias tentativas com outros narradores. Reescrevi o romance várias vezes, a primeira tentativa com um narrador observador em terceira pessoa, depois o fiz onisciente. Mas achei frio e distante e ao reler a estória quis participar daquela família matriarcal sem ter a necessidade de nascer e sentindo toda a jornada do herói. Arquitetei o narrador-personagem mesclado com o narrador onisciente. Queria ao máximo me aproximar da agonia da mãe, do universo familiar e do país como quem deseja estar inserido e não consegue pelo fato de estar no aconchego do útero. O feto tem personalidade própria apesar de estar sempre conectado com o inconsciente da mãe. A visão nebulosa , a fala picotada, como quem começa a perceber a realidade aos poucos me trouxe a vontade de construir um herói e daí foi a grande surpresa quando percebi a força dos personagens. E alguns suplantaram a própria (in)existência do narrador. Acredito que subtextos tenham sido trançados e que a jornada tenha sido percebida e a premissa “sou mágico e conseguirei mudar a história” foi modificada. Temo estar dando spoiler. Vou ficar por aqui, deixando o leitor tirar suas conclusões.
FERNANDO – Os homens são forte ponto de atração para sua história. Qual foi sua fonte de desejo e curiosidade, também, em trazer ao universo masculino, no livro, este fio de tra(n)çar destinos e desterros?
ADRIANA – Os homens são aqui o grande objeto de desejo. Homens ausentes ou por morte ou por necessidade numa época em que a mulher era criada para ser dona de casa e esposa. Por suas ausências destinos foram traçados e a força do matriarcado suplantou qualquer resquício de dor. Caso fosse dado à Vó do Caco a escolha sua vida não teria que se desdobrar em tantas para conseguir sobreviver aos desígnios.
FERNANDO – metáfora dos cacos me parece bem poética e apropriada para trabalhar algum esfacelamento familiar. Principalmente porque a cozinha e-sala-de-estar de uma casa parecem formular toda uma ética e estética do mater. familiar, do seio onde se efetivam, anseios, e afetividades do núcleo. Fale disso.
ADRIANA – Sim, dos cacos formam-se porcelanas se pensarmos que sempre haverá uma forma de recomeçar. O caco é a metáfora do que restou. Dos restos pode-se criar o inteiro. Do sofrimento podemos trançar bordados e histórias. As relações foram cristalizadas no campo da memória e daquilo que chamo de atemporalidade. Ao conversar com pessoas que já morreram sem que isso seja sinal de distúrbio. E quando o personagem dialoga com pessoas que tanto amou, mas que não existem mais no campo físico e que estão na memória de si e da casa, entre a cozinha e a sala de estar. A casa poderia ser entendida como o registro de uma existência?
FERNANDO – A Lia que tem a chaves esta situação quase mitológica de contos de fadas que me lembrou a carta da guardiã do tarô, ela dá ao seu romance um lado ao mesmo tempo bem misterioso, mas também, funcional quanto aos aspectos de sentidos oclusos do enredo. Há muito que sugestionar quando ela aparece na trama. Como foi ela dentro da sua história?
ADRIANA – Não li a carta da guardiã do tarô, apesar de amar os contos de fadas. Tive necessidade de trazer à narrativa os passos da jornada do herói e Lia funciona como o personagem guia. Sou apaixonada por contos de fadas e acho que ele somente é associado à literatura infantil, o que é um preconceito.
O realismo mágico que tem em Gabriel Garcia Marques um expoente, não seria um desdobramento dos contos folclóricos? Há cenas no Aldeia dos mortos que tentam se aproximar desse realismo mágico, criando uma espécie de surrealismo. Sardinha é um personagem criado com esse pensamento. A cena da ladeira é um exemplo.
FERNANDO – Me fala do lançamento, dê o serviço, e fale um pouco do texto que entra no livro? As oficinas como foram para você?
ADRIANA – Gosto das oficinas literárias porque o ato da escrita é muito solitário e muitas vezes o escritor precisa do olhar do outro sobre sua escrita. Continuo me encontrando como meus colegas de profissão, que chamo de confrades. Acho importantíssimo ler o outro e se ler. Aprendemos com isso que tudo pode ser escrito em literatura, que a individualidade do escritor, a forma como escreve deve ser respeitada. Faço parte de dois grupos, os Quinze e Lente, pincel e Caneta. Por conta desse hábito de gostar de ser lida e de ler, o manuscrito foi parar nas mãos do crítico e escritor Elias Fajardo.
O prefácio do Elias Fajardo, autor de títulos como “Ser tão menino” e “Belo como o abismo”, foi uma grata surpresa porque tendo a não gostar tanto dos meus escritos. Esse hábito de criticar advém das oficinas, quando dilapidamos o texto até não poder mais e testamos narradores e depois de muito cortar conseguimos publicar como quem diz, está bom, mas não está perfeito.
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