Fernando – A aranha de certa forma tem uma mitologia narrativa, certas palavras como teia e fio fazem parte do vocabulário da literatura. Por que você pensou nelas e quais as semelhanças entre a sua natureza e a criação literária?
Carlos Henrique – Não seria o escritor “uma aranha que se dissolve ela mesma nas secreções construtivas de sua teia”? Os parênteses são de “O prazer do texto”, do Barthes. Os escritores fazem teias diárias, como as aranhas, mas as nossas são narrativas, e muitas delas não vão para o papel, são derrubadas pelo vento, ou pela realidade.
Eu passava os verões numa pequena casa, rodeada por Mata Atlântica, em Garopaba, em Santa Catarina. E todos os dias me deparava com ao menos cinco aranhas, das grandes. Eu invadia o espaço delas, a mata, e elas estavam entrando em meu espaço.
Em sua maioria eram as de jardim, tipo a Lobo, que não são agressivas, e que para você levar uma picada, sem gravidade, é preciso meter o dedo nelas. Mas também apareciam as da espécie Armadeira, que são bem agressivas, e sua picada tem ação neurotóxica e cardiotóxica. Resumindo: pode matar. Eu tremia de medo delas. Já me levantava com os olhos arregalados, procurando aranhas pela casa, pois meus filhos eram muito pequenos – hoje um tem 6 e o outro 10 anos – e precisava evitar acidentes.
Então comecei a estudar o comportamento e as espécies mais comuns e, quando percebi, estava vendo algumas representações artísticas na literatura, artes visuais, no cinema, e já estava escrevendo histórias inspiradas na aparência, no comportamento delas, colocando como personagens ou alterando clássicos da literatura – em um dos meus contos, Gregor Samsa acorda como uma aranha e não como uma barata. Eu acredito que um escritor deve ser fiel às suas obsessões. A obsessão de Borges com a mitologia, por exemplo, é claramente refletida em seus contos. Assim como o sentido de deslocamento da família tradicional americana, nos contos de Lucia Berlin. E, como já escreveu o escritor catalão Enrique Vila-Matas: “Não há melhor forma de se livrar de uma obsessão do que escrever sobre ela”.
Fernando – Para cada espécie de aranha, qual era sua especificidade de começar a escrita de um conto? A relação entre elas e a história como se dava?
Carlos Henrique – Fiquei surpreso com a imensa quantidade de espécies de Aranhas, são muitas, milhares, e com características muito próprias. No livro, em alguns contos, a relação entre a narrativa e as aranhas é mais subjetiva, quase invisível, como algumas teias que encontramos por aí.. É um livro-jogo, e depende muito do leitor, de entrar no jogo… Em outras narrativas é mais evidente. Depende da aranha… Uma que me surpreendeu e até usei no conto “Saltadora”, é sobre uma aranha-saltadora do leste da África, conhecida como aranha vampira. A espécie prefere se alimentar dos mosquitos Anopheles fêmeas, mas apenas de espécimes que tenham se alimentado recentemente do sangue de mamíferos e outros vertebrados. Ou seja, só caça as gordinhas, com a pança cheia de sangue. O mais curioso é o motivo: as pesquisas descobriram que o sangue daqueles mosquitos é afrodisíaco para essas aranhas. Outro bem evidente é o conto Cuspideira, pois a espécie é conhecida por lançar sua teia em suas vítimas, prendendo-as ao chão. E é uma espécie territorialista. Tudo que a personagem Amanda é, e ela praticamente prende sua vítima, o estudante Rodrigo, no chão. Ou o da Lince-americana, que é uma espécie mestre da emboscada (e a personagem do conto está emboscando cachorros, jogando comida envenenada para eles).
Fernando – Como foi substituir a barata do romance do Kafka pela aranha, que efeitos na história a aranha trouxe para narrativa?
Carlos Henrique – Em “O método Albertine”, a Anne Carson se apropria da Albertine do Proust, da teoria em cima do livro, de tudo, e faz a sua história. O escritor argentino Pablo Katchadjian engordou “O Aleph” do Borges e foi parar na justiça, por conservadorismo da Kodama, a viúva. Eu emagreci o texto do Kafka, já que aranhas são mais fáceis de matar do que baratas. Mas muita coisa ali é do Kafka, o encadeamento, a sequência. É Kafka. E não é. A dedicatória é um aceno amistoso ao Katchadjian, é um “tamojunto”. No conto o final é mais rápido do que a narrativa do Kafka, pois aranhas assustam mais que baratas, e os humanos tendem a tomar medidas mais drásticas com elas.
Fernando – Você acha que há um certo medo ancestral com relação às aranhas, elas possuem tanta simbologia, em tantas culturas, que para uma aproximação à escrita ou narrativa, parece um foco muito detalhista para encenar uma história. Há tantas narrativas sobre aranhas espalhadas pela história de literatura?
Carlos Henrique – As aranhas estão nos nossos genes: pesquisadores descobriram que o medo que temos delas é transmitido pelos genes, de geração em geração. Ou seja, elas estão dentro da gente. Então é natural que exista tanta representação. Então eu pensei muito numa maneira de estabelecer diálogos com elas, mas de uma maneira não-convencional. Então é um livro lusco-fusco sobre Aranhas. É e não é. Mas é.
Fernando – Há infinitas possibilidades narrativas em relação ao tom, estilo, linguagem. Você fez um belo estudo sobre gêneros narrativos. Como foi dar um tratamento bem próprio à cada conto usando uma aranha por contexto?
Carlos Henrique – Acredito que cada conto pede uma forma de narrar, uma dicção, uma voz… E que a forma deve mudar de acordo com o conteúdo. Por isso tantas vozes, tantas formas…Este é um livro de contos. Não uma antologia, não uma reunião. Ou seja, cada conto ali tem uma razão de estar, e naquele lugar, e naquela ordem, e todos eles acabam se conectando no final, lá no penúltimo conto, o da Armadeira. Ou seja, é uma grande teia, onde o leitor vai se defrontar com uma aranha, com o fim. Eram mais de cem contos, ficaram 32, talvez não os 32 melhores, mas os que formaram a melhor teia narrativa. Existem aranhas pequenas e grandes, e contos pequenos e grandes. Algumas aranhas pequenas são bem venenosas, como a Marrom, e alguns contos pequenos também podem ser.
Foto: https://bit.ly/2Xn4So3
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