“Branco ou negro
Os dois são a metáfora viva
Em que se escondem os girassóis da lua” p.53
Alexandra Vieira de Almeida
Proveniente do latim, lux, lucem, a palavra “luz” representa o elemento físico capaz que permitir a visualização dos objetos, sendo captada pela visão. É, portanto, através do globo ocular que se pode compreender o mundo através das cores, chegando, neste introito, à grandeza presente em “A negra cor das palavras”, novo livro de poemas de Alexandra Vieira de Almeida, publicado pela Editora Penalux, 2019.
Em posfácio extremamente meticuloso, Nuno Rau disseca a importância das cores como o “resultado da absorção e da reflexão, pelas superfícies dos corpos que observamos” e avança, em texto didático-histórico ao dizer que “As cores do espectro solar – vermelho, laranja, amarelo, verde, azul e violeta. – são o resultado dos diferentes comprimentos de onda que os corpos absorvem ou refletem de forma distinta, de tal modo que, quando uma substância reflete todos os comprimentos de onda, se diz que é branca, e quando absorve todos os comprimentos de onda, di z-se que é negra.” (p.67).
Já Antonio Carlos Secchin, em quarta capa magistral que abrilhanta a obra, disseca que não há panfletarismos em “A negra cor das palavras”, ainda que o texto trabalhe intensamente com a polarização do negro x branco. Apesar da forte carga social nos poemas, diz Secchin que “é num outro plano, de intensa subjetividade, que m elhor se realiza’”. E, ao constatar o mundo solitário de poucas interlocuções em que está imerso o eu lírico, finaliza assegurando que “a cor branca se apresenta como a soma de todas as dores.”
O livro se inicia com “Sobre a beleza do negro”, poema que evoca os complementos como num jogo de xadrez. Trata-se de metáfora para relativizar não um confronto entre as cores, sobretudo porque ” O branco e o negro /são a mistura / que convive no meu peito aces o/ pela chama da miscigenação”, tendo em vista a formação étnica do povo brasileiro. Até porque se “O meu verso tem que ser força negra / que não arraste o branco da página / para o caos” (p. 9) é essencial a comunhão das cores, para que haja uns igualdade de olhares e também a beleza do mundo.
Não à toa o poema que dá titulo ao livro “A negra cor das palavras” é o segundo da obra. Dele, merecem destaque os versos finais: “Na languidez do mapa, / o itinerário das negras letras / a faiscar um caminho para o Paraíso” (p.10),segundo os quais, na concepção expressa, a claridade só é feita pelo caminho das negras letras.
Observa-se, por conseguinte, apenas na leitura destes dois poemas a tônica da obra de Alexandra Vieira de Almeida. A negritude não é vista como algo dissociado da História. Isto porque, é de conhecimento público a tragédia que foi a escravização de seres humanos, com destaque, aqui, ao Brasil, no século XIX. Sendo essa uma chaga, cujas cicatrizes ainda levam a um sangramento no tecido social brasileiro, Alexandra traz para a literatura não um viés partidário, mas literário em essência. Ao dominar plenamente a ferramenta de trabalho, que é a palavra, realizou incessante busca para selecionar o c ampo sem ântico capaz de traduzir a inserção da cor negra na sociedade. Merecem menção os poemas: “Sobre a beleza com negro”; “Tulipa negra“; “A negra cor das palavras”; “Floresta negra“; “Chocolate artesanal“; ” O pássaro negro”; ” A estrada obscura”; ” Cai o pano preto”; “Negro verbo”; ” Os fios negros de Ariadne”; ” Navio noturno”; “Um noturno”; e “O olhar negro da memória”. E, no posfácio, Nuno Rau disseca que “ (…) a cor negra não é a negação da luz, mas sua fonte e sua exaltação, visto que permite, por oposição, obter os melhores contrastes”, revelando o mergulho de Alexandra Vieira de Almeida nas questões mais intrínsecas do eu X o enxergar o mundo.
Quanto ao ideário temático proposto na obra em voga, uma ressalva ao poema “Asas do amanhã”, (p. 28), no qual grita um eu lírico feroz: “O país dividido em fragmentos / como o fruto proibido //A violência explode / com o artifício dos assassinos da pátria//. Quero o meu direito / ser um humano facho / em meio a inúmeras vozes / em que o grito se esquarteja em pedaços.// (…) este é o Brasil / que eu conheço / (…) verdadeiro gigante (…) / afugentará as feras(…) / para dentro de suas prisões infames”. E deste brado retumbante, ecoa o desejo de que “a lei da pátria do s humano s” torne os “anjos pelas asas do amanhã”, com a tão sonhada igualdade real.
Em “Orixás da escrita”, (p.51), há uma referência à cultura negra porque “Os orixás salvam minha escrita pelos poros”, já que “Minha escrita é meu orixá” e “A consciência cresce como um nado profundo no mar de Iemanjá”. Nota-se, aqui, a preocupação com a África tão vilipendiada ao longo da História por aqueles que se dizem irmãos.
Há, ainda, outros poemas se contrapõem em uma dualidade que se completa, a saber: “Uma réstia de luz”; “Sob a luz tênue da noite” e “Meia-luz”. Assim, a poeta mostra a complementaridade das cores, as quais não devem ser usadas com objetivos discriminatórios, assim como registram usos aleatórios.
Ainda que o livro tenha um eixo temático em torno do qual gravita, Alexandra Vieira de Almeida consegue tratar de temas diversos também, como se notará a seguir com citação de dois textos, os quais não excluem outros. Se em “Nostalgia” (p.13) há um clima de apego ao passado; em “Grão” (p.55), observa-se a natureza em comunhão, apesar do céu que se cobre da nudez solar quando “(…) a experiência naufraga no mar do segredo.”
A poética de Alexandra Vieira de Almeida ainda trabalha com a mistura dos elementos concretos e, abstratos, dando beleza aos poemas como em: “Não faço da minha dor / um destino para a casa escura / em meio à floresta encantada do desconhecido.” ou na passagem: “O teatro das interrogações / costurava um labirinto /sobre o mar espumante do desejo”, vide o poema “Meia-luz”p.49.
A riqueza imagética da poesia em voga está nos recursos de que se utiliza, desde intensa presença de figuras de linguagem, jogos de palavras, recriação de provérbios, presença de rimas, entre outros. O poema “Livro aberto” é um desses exemplos. Marcado por cinco estrofes, todas se iniciam por metáforas (“Um livro aberto é…), as quais chegam ao ápice, quando o eu lírico sentencia, ao final: “O livro aberto é feito de tinta e medo / Sossego e sombra / Não dura mais que um dia / E já no outro é espanto.” (p.15).
Na página 17, num mesmo poema, há “O tempo cortado por tesouras”, com bela prosopopeia e a simíle em “as peças de xadrez se intercalam caem como montanhas no seu peso colossal”.
Em “Outono vazio”, nota-se a presença de aliterações, rimas toantes e intensa musicalidade: “A febre não afugenta a fera / Era hora de escolher a fruta da vida // Universo do tudo / Luto contra o luto do mundo” (p. 33).
No poema “Meia-luz”, eis que pula a antítese: “(…) a vida passeia com a morte / nos jardins suspensos do Paraíso” (p.50).
Ainda merecem espaço o paradoxo/ metáfora: “O homem só é um velho / Que se esqueceu de sua juventude distante” (p.64) ou ainda os versos de “O tapete e o homem só”: “O homem só o olha o relógio / Contrabandeia o tempo com seu presságio de fios / A rede não é para os peixes, é para os homens.” p.64.
As rimas despontam no poema “Os fios negros de Ariadne”,(p.41) quando se lê: “O Minotauro é acovardado / Por este drama / Ele é feito de lama / Ariadne feita de trama.”, o que não excluem diversos jogos rítmicos presentes nesta obra.
Inconsciente ou não, a leitura do poema “Cai o pano preto”,(p.38), lembra o clássico livro “Cai o pano“, de Agatha Christie, no qual a maior autora de livros policiais do mundo matou um grande protagonista, o célebre Hercule Poirot, o detetive das células cinzentas, ou seria o Capitão Hastings?
Todavia, se no livro, Poirot morre; no poema de Alexandra, “Caem todos os panos”, já que “O mundo é uma farsa sonora / De cantos enovelados pelas linhas da morte”, de forma que o eu lírico propõe trocar o pano por todas as cores, sobretudo a de cor noturna a obscurecer os “olhos taciturnos” da poeta.
Querer a cor mais nobre, na escrita, é ter a inspiração para escrever ” A escrita de coisas serenas” (p.38).
Já o poema “Navio noturno”, (p.45) ,não se refere ao clássico de Castro Alves, o “Navio Negreiro”, como bem dito pela poeta na primeira estrofe Trata o texto de um navio de igualdade, no qual “todas as raças se banqueteiam“, já que ele carrega um alfabeto de letras coloridas,” Em que o branco e o tinto se saboreiam / À mesa dos seres universais.” Mesmo assim, a intertextualidade pode vir à tona, nem que seja na observação de amantes vorazes da literatura nacional.
E, se “O pássaro negro”, p.20, é um poemas mais belos do livro. A ave, “lenda no voo da violência” é abatida, sem dó nem piedade pelo homem, que, com um “tiro mortal” assassina ” o sublime cântico da vida”. Daí, uma inferência: e se ave fosse branca?
Em suma, a poesia de Alexandra Vieira de Almeida cresce a cada dia e, com este “A negra cor das palavras”, alcança os píncaros, patamar elevadíssimo, com literatura de primeiro quilate. Não à toa, poetiza: “Em segredo, revelo a argúcia do poema / que ainda não se satisfez / com a luminosidade opaca de meus versos.” p.50.
LUIZ OTÁVIO OLIANI cursou Letras e Direto. É professor e escritor. Em 2017, a convite de Mariza Sorriso, representou o Brasil no IV EPLP em Lisboa. Participa de mais de 200 livros coletivos. Consta em mais de 600 jornais, revistas e alternativos. Recebeu mais de 100 prêmios. Teve textos traduzidos para inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, holandês e chinês. Publicou 14 livros: 10 de poemas, 3 peças de teatro e o livro de contos “A vida sem disfarces”, Prêmio Nelson Rodrigues, UBE/RJ, 2019. Recebeu o título de “Melhor Autor Apperjiano 2019” pelo conjunto da obra.
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