“Tire essa faca cega/ dos meus olhos!
Preciso olhar/ minha plantação de horizontes”.
Luiza Cantanhêde
Pequeno Ensaio Amoroso é o terceiro livro de Luiza Cantanhêde. Foi publicado pela editora Penalux e premiado pela União Brasileira de Escritores UBE/RJ, em 2019. A obra está dividida em quatro seções: Ferida, Geografia Esquecida, Somente a Boca e O Destino das Cicatrizes.
Há, em Luiza, uma linguagem árida (que revela muito da condição humana) com poucas palavras. Cresce uma antítese delicada, na linha discursiva dela. Imagens poéticas firmes como a pedra refazem a delicadeza da água: “para tua fome,/ as pedras;/ a palavra, cúmplice do nada/ para tua sede,/ um veio d’água/ aturdido no deserto”.
Do ponto de vista estilístico, existe forte atração entre os contrários, títulos cheios de enigmas, uma sintaxe fragmentada que prefere as orações coordenadas. Além disso, a poeta carrega os versos de ambiguidade e ironia. Uma ironia fina, muitas vezes imperceptível ao leitor desatento como podemos perceber no poema Rituais (2019, p. 52):
Três vezes
bebi a água
do pecado.
Três vezes
neguei
a mim mesma.
Fiz do amor
a minha divindade.
Após a prisão, Pedro negou conhecer Jesus por três vezes. Só com o canto do galo, aquele homem voltou a refletir. Viu o Cristo, não segurou as lágrimas do arrependimento. Luiza é tão profunda quanto esta bela imagem do Cristianismo, porque negou a si mesma, no entanto se perdoou através dos ensinamentos da contemplação. Há nesta retomada intertextual, uma ironia sutil, capaz de ensinar valores aos religiosos que só pregam a “prosperidade financeira”.
Não fundou uma religião nova. Ligou-se profundamente com o humano. Usou o ato amoroso para se pensar e religar-se ao mundo: “fiz do amor/ a minha divindade”.
A poesia toma café na varanda da casa, observando o cotidiano no seu eterno devenire. Os diálogos são a marca fulcral da elaboração enunciativa de Luiza Cantanhêde. Podemos constatar isto, no texto Um Quase Poema (2019, p. 20):
Não fosse esse gosto de
chumbo derretido na boca,
a mão estendida,
humilhada e com fome.
Não fosse esse chão duro,
os ossos duros de roer.
Não fosse o corpo das marieles,
camillas, arethas emiles,
das tanias, dandaras, marias.
Não fosse a miséria
no mapa dos continentes.
Não fosse esse
grito preso,
essa indignação,
essa impotência
(o silêncio que asfixia)
Eu diria que isto
é quase um poema.
O poema conversa com a história do Brasil. Ilumina figuras femininas importantes, que ajudaram a construir nossa percepção das injustiças sociais. Faz referência a vereadora Mariele Franco (PSOL/RJ) que fora covardemente assassinada no dia 14 de março de 2018.
Uma mulher negra, favelada, numa nação marcada desde o zero ano pela escravidão (não poderia ganhar uma dimensão nacional). Era preciso eliminá-la. Todavia, o assassinato da ativista fez sua luta ganhar uma dimensão internacional. A poeta aborda o sentimento de boa parte da nossa população e não usa as marcas do panfletário. Pinta as Marias, as Camilas e Dandaras com as tonalidades do belo.
É o poema que nasce, negando a si mesmo a certidão de nascimento, num diálogo com Poesia de Carlos Drummond de Andrade: “não fosse esse/ grito preso/ essa indignação,/ essa onipotência/ (o silêncio que asfixia)/ eu diria que isto/ é quase um poema”.
“A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida”, afirma Bakhtin.
Parece que a poeta está lendo o filósofo revolucionário da Rússia, quando escreve Polônia (2019, p. 31):
Preciso comportar
no peito os escombros
de uma vida inteira.
Polônia é um país do Leste Europeu, com uma forte herança judaica, predestinado a sofrer massacres pela posição geográfica que ocupa. Durante a Segunda Guerra Mundial foi ocupada pelos nazistas e pela União Soviética. Guarda muitos dos destroços do homem.
A poeta tece o texto com os desastres que atravessam o povo polonês e a ela própria. Guardar as ruínas, as marcas do sol, as feridas é algo doído para o eu lírico.
Encontrar e identificar as plantações de horizontes nos constantes diálogos de Luíza Cantanhêde foi o desafio proposto por mim. Alcancei? Não completamente, pois demanda um estudo mais minucioso e demorado.
Encerro, afirmando que a dialética da ferida perpassa todos os versos do Pequeno Ensaio Amoroso.
PAULO RODRIGUES – Professor de literatura, poeta, escritor e autor de O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de Ninguém (Editora Penalux, 2018). Ganhou o prêmio Álvares de Azevedo da UBE/RJ em 2019, com o livro Uma Interpretação para São Gregório. É membro da Academia Poética Brasileira.
Be the first to comment