“O que a lama não levou estamos perdendo aos poucos”
Se existe um gênero nas diversas formas de narrativa que consegue traduzir de maneira visceral o mal-estar de nossa sociedade, com certeza esse gênero é o terror. Mesmo que grande parte da crítica mais tradicionalista tenha ojeriza ao terror, foi através de seu apelo estético, temas e metáforas que o diretor Ari Aster discutiu sobre morte, luto e opressão da família, no filme Hereditário (Diamond Films, 2018), e que o quadrinista Shiko tratou da deterioração (falência) do casamento e da alienação social, na HQ Lavagem (Editora Mino,2015).
Mas se há um medo que deveria nos assolar atualmente, esse medo diz respeito ao futuro de nosso plante, principalmente por estarmos no limite dos recursos naturais e grande parte dos que comandam a humanidade se interessarem mais interessados pelo lucro inconsequente, do que pela nossa sobrevivência. E esse verdadeiro terror social que se tornarão as questões ambientais é retratado na HQ Lama (Selo Carniça Quadrinhos, 2018), da dupla Rodrigo Ramos e Marcel Bartholo.
Na obra acompanhamos dois períodos históricos: no primeiro vemos um relato ficcional da expedição do bandeirante Pero Lobo, que desapareceu enquanto tentava cruzar o Caminho de Peabiru, no início da década de 1530. O segundo período se passa nos tempos atuais, onde um lavrador assiste a degradação do pequeno vilarejo em que vive, após um crime ambiental que devastou o lugar.
E, obviamente, há a presença do sobrenatural em Lama. No caso o roteirista Rodrigo Ramos buscou inspiração no Ipupiara, ser lendário que fazia parte da mitologia de povos tupis que viviam no litoral brasileiro no séc. XVI. Intimamente ligado as questões ambientais, de acordo com a crença, esse ser atacava os humanos, devorando partes de seus corpos. Segundo o que Rodrigo conta no prefácio da HQ, a ideia original era fazer um conto sobre um “monstro do pântano nacional”, mas a coisa saiu do controle a tal ponto, que a história não caberia em um conto e assim surgiu Lama, uma trama em que a natureza se vinga da humanidade.
Se em Carniça (Publicação independente, 2017) Marcel Bartholo optou por cores terrosas e cinzentas, com detalhes em vermelho, fazendo referência à aridez e desalento do quadro Os Retirantes, de Candido Portinari, em Lama a técnica utilizada foi o lápis, para os momentos em que a trama se passa no passado, e lápis com contornos e detalhes em nanquim, nos momentos em que é representado o tempo presente. Com essa escolha, o ilustrador parece nos dizer: “cometemos erros no passado e, mesmo com algumas diferenças, continuamos com os erros no presente”. Mas que erros são esses?
A lama em Mariana e Brumadinho
Novembro de 2015, a barragem do Fundão, operada pela mineradora Samarco, rompe-se atingindo 1.420 hectares que abrangem as cidades de Mariana, Barra Longa e Rio Doce, todas do Estado de Minas Gerais. A lama que vazou da barragem contaminou o Rio Doce e o Oceano Atlântico, desalojou centenas de famílias e deixou um saldo de 19 mortos, sendo que essas mortes foram classificadas pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos como uma violação aos direitos humanos.
Pouco mais de três anos depois, no dia 25 de janeiro de 2019, outra barragem pertencente à mineradora Vale se rompe, atingindo a cidade de Brumadinho (MG). Esse rompimento liberou mais ou menos 11,7 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, desalojando centenas de famílias da região, deixando ao menos 21 pessoas desaparecidas ou sem identificação e 249 pessoas mortas.
Esses dois crimes ambientais escancararam um grande problema em nosso país, o alto nível de precariedade nas áreas de mineração, gerado por um modelo privatista da exploração mineral, o que causa graves riscos à saúde dos trabalhadores das mineradoras, além de gerar um grande problema para as comunidades e cidades que existem ao redor, não só por questões de saúde e moradia, mas também por conflitos entre mineradores e a população.
Algo que torna essa realidade ainda mais desesperadora é o fato de que, segundo um documento da própria mineradora Vale, oito barragens de resíduos de mineração localizadas em Minas Gerais estão em grave risco de rompimento, ou seja, ainda podemos ter mais crimes como os que ocorreram em Mariana e Brumadinho. Essa situação se torna ainda mais grave com a chegada de 2019.
O efeito Bolsonaro
Na minha edição de Lama, Marcel Bartholo escreveu a singela dedicatória: “A realidade é sempre pior”. E com a entrada de Jair Bolsonaro na presidência, a realidade piorou ainda mais.
Em seu programa de governo, Bolsonaro propôs a flexibilização das leis ambientais para estimular o agronegócio, a mineração e o corte de madeira, limitando a atuação do IBAMA e da FUNAI. O Conselho Nacional da Amazônia, órgão que era vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, foi transferido para a vice presidência, sendo que Mourão colocou 19 militares em cargos dentro do Conselho e nenhum representante do IBAMA e da FUNAI. Foi de Bolsonaro a frase infame, “no que depender de mim, não tem mais um milímetro quadrado demarcado [das terras indígenas]”, também partiu dele o incentivo ao “dia do fogo”, onde agricultores aproveitam o período de seca para atear fogo na floresta. O resultado desse projeto está sendo catastrófico.
Segundo o INEP, o número de queimadas na Amazônia é o maior desde o ano de 2010, sendo que vários especialistas alertam para o caráter irreversível da devastação da floresta amazônica. Após divulgar informações sobre o estado crítico da floresta amazônica, o diretor do INEP, Ricardo Galvão, foi demitido do cargo. Já o Pantanal sofre o maior número de queimadas da história. Foram 1,3 milhões de hectares consumidos pelo fogo, sendo que os municípios mais atingidos foram Corumbá, Miranda e Aquidauna. Grande parte do bioma pantaneiro foi incinerada nesse processo. Já em plena pandemia de COVID 19, os índices de desmatamento na Amazônia dispararam, já como um incentivo extra, as fiscalizações diminuíram drasticamente.
Com a extinção dos comitês do plano de ação de incidentes com óleo, um vazamento de petróleo na costa nordestina poluiu mais de 2 mil quilômetros de litoral que se estende do nordeste ao sudeste brasileiro, causando um grande impacto ambiental na vida marinha que levará décadas para se recompor, o que vem acarretando em problemas econômico para as cidades praieiras, assim como para a população que tira seu sustento da pesca e do turismo.
Por falar em população, o contato dos voluntários que ajudaram na limpeza das praias com o petróleo, gerou uma série de problemas de saúde, como irritação e processos alérgicos na pele.
Em relação aos povos indígenas (tema que a dupla Rodrigo e Marcel chegam a abordar em Lama), houve um aumento de 61% no desmatamento em terras indígenas no Xingu. Já segundo dados da Pastoral da Terra, em 2019 foram registrados 7 assassinatos de lideranças indígenas em conflitos de terra, o maior número de casos em 11 anos. Só no mês de dezembro, foram mortos 3 ativistas indígenas em conflito. Ao todo, somam-se 27 mortes de indígenas relacionadas aos conflitos com mineradores e madeireiros.
É desse descaso com o meio ambiente que a HQ Lama trata onde, tanto no passado, quanto no presente, os interesses e a ganância de poucos têm destruído tudo e todos que cruzam o seu caminho…
De volta à HQ
...E foi esse descaso que despertou a ira de Ipupiara e causou uma histeria coletiva no pequeno vilarejo em que o pequeno lavrador, personagem principal de Lama, vive. Foi essa ganância inconsequente que destruiu e tomou tantas vidas inocentes. É como aponta o cineasta Rodrigo Aragão no pósfacio da HQ, em tempos onde a realidade se torna tão absurda, só com a ajuda de monstros mitológicos e zumbis que conseguimos processar tanta desgraça.
Mas, mesmo sendo uma HQ de terror, o que mais assusta em Lama não é o enredo, os monstros, ou as ilustrações chocantes. O que realmente assusta é que o horror que acomete toda a população brasileira não foi causado por uma entidade sobrenatural incompreensível para a mentalidade humana, mas sim pela fome de poder de nossa elite. Em Lama os verdadeiros monstros somos nós. Salve-se quem puder.
Para ler, ver e ouvir:
Vale: O crime ambiental compensa – Meteoro Brasil
Bolsonaro e o meio ambiente – Meteoro Brasil
Mais óleo no nordeste – Meteoro Brasil
Número de mortes de lideranças indígenas em 2019 é o maior em 11 anos – Gisella Meneguelli
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