Assim é o poeta: um Ícaro que ousa aproximar-se do Sol, mesmo sabendo que a queda é o desfecho natural. Leandro Rodrigues
ENTREVISTA
FERNANDO ANDRADE: Poderíamos dizer que o espaço da página de um livro é uma queda? Onde os sentidos estão descendo do seu autor ao processo de captura de um leitor? Aqui claro envolvendo desejo, conquista, identificação?
LEANDRO RODRIGUES: Perfeita definição. A página é mesmo uma queda. No Todas As Quedas São Livres (Penalux, 2020) utilizei-me desse recurso em alguns poemas, com as palavras despencando, partes delas (sílabas, letras) caem de forma estranha e vertiginosa pela página. Outros aproximam-se de uma fragmentação de conceitos, numa mistura de poemas, que vai do soneto, passa pelo terceto ou haicai e outros mais experimentais e livres. Costumo dizer, fazendo alusão ao Tropicalismo de Caetano, Gil, Torquato… que de todas as formas poéticas, eu prefiro todas. E a relação com a queda passa também por esse ponto emblemático que você bem citou: a poesia como desequilíbrio de um árduo fazer que envolve um trabalho insano de busca, pesquisa, um rasgar de veias para pouquíssimos leitores e quase nenhuma divulgação ou repercussão. É o inseto no Áporo de Drummond, cavando, cavando em país bloqueado, exaustos na noite sem fim, num labirinto sem saída. Mas segue cavando. Assim é o poeta: um Ícaro que ousa aproximar-se do Sol, mesmo sabendo que a queda é o desfecho natural.
FERNANDO ANDRADE – O céu sempre foi visto como uma zona de imaginação, as nuvens parecem possuir muitas imagens com relação a este espaço até de criação artística. Como você processou esta ideia da poesia junto aos céus, sendo que este também já foi processo de uma metafísica religiosa?
LEANDRO RODRIGUES: Alguns poemas nasceram após eu tomar contato com a história do equilibrista francês Philippe Petit e sua inacreditável travessia das torres gêmeas em NY, 1974. Assisti depois ao filme e a um documentário sobre o feito. Pesquisei sobre diversos outros equilibristas e descobri a importante figura de uma mulher italiana de nome Maria Spelterini que era a única mulher a atravessar o desfiladeiro de Niagara em uma corda bamba, o que fez em 8 de julho de 1876, achei formidável. Assim como Lillian Leitzel, outra importante equilibrista circense, que morreu ao despencar da corda bamba numa apresentação em 1931 em Copenhague na Dinamarca. Lembrava-me também vagamente de Karl Wallenda, um equilibrista americano famoso que perdeu a vida numa queda em meio à travessia em corda bamba entre prédios em Porto Rico, 1978. Sua queda e seu desequilíbrio por conta dos fortes ventos foi filmada e passou na tevê. Outro equilibrista fascinante, esse não da corda bamba, mas de ficar pendurado em altos edifícios, às vezes de cabeça para baixo tomando chá com biscoito para propagandas de lojas de departamentos, é o americano Alvin “Shipwreck” Kelly: há fotos sensacionais de seus feitos nos anos 30. Enfim faço dedicatórias de alguns poemas de O Arco do Desequilíbrio para esses homens e mulheres pássaros, Ícaros da vida real. Talvez tudo se junte não num pensamento religioso, mas na simbologia mítica do voo e da queda. Um dos meus poemas preferidos é o Ícaro do poeta japonês Yukio Mishima traduzido pelo nosso Leminski.
Ao mesmo tempo fui compondo e imaginando diferentes imagens de voos e quedas. Um exemplo é o A Menina, o caminho, a pedra e o rio que já havia sido publicado em Portugal, ali a menina atira uma pedra num rio e toda a graça da menina se junta á tarde, ao caminho, ao ritual de passagem e a pedra afunda. Outro um relógio antigo com seus ponteiros parados pela morte de alguém na casa. Os ponteiros são a corda estendida. O fio tênue da existência e da inexistência. O mesmo ocorre em poemas que falam sobre as teias de aranha, o abismo do mar, os acordes do instrumento ou a
germinação de tudo.
Fui aos poucos juntando o quebra-cabeça e o livro foi se formando. A questão não é tanto o voo, mas o equilíbrio na corda bamba. A queda por um fio.
Pedi ao querido poeta Alberto Bresciani para que fizesse um texto sobre o livro e ele fez de forma belíssima e generosa. Uma obra-prima de um poeta do mais alto nível e que fecha o livro da melhor forma.
FERNANDO ANDRADE: O espaço tanto dado à palavra, como dos sentidos, parecem que se dilatam pela movimentação? Da estética do poema na página. Que tipos de efeitos você quis dar para este balé onde os poemas se movimentam ao percurso até da leitura?
LEANDRO RODRIGUES: É o ponto de desequilíbrio em que as palavras estão em constante movimento e a queda está por um fio. É o ato poético. A busca incessante pela travessia. A vida – A morte. Tudo por um fio. A teia de aranha fina, tênue, mas precisa. A experimentação das palavras dispostas na forma de uma teia em que a existência e a inexistência se enroscam – tecem e são tecidas. Os frios ponteiros do relógio que demarcam existências, a menina bela e seu rito de passagem pela tarde, o homem velho que dobra a esquina com seu passo lento, Isadora Duncan dançando entre as sombras do tempo, Leila Diniz em sua liberdade para além de Espanhas e Holandas, Violeta Parra e seu canto dissonante, estranho e lindo.
Quis muito que esse livro tivesse um outro viés. Nos meus dois livros anteriores publicados a questão da crítica social é latente. Nesse também tem um pouco principalmente no poema Natal no Morro:
de sobressalto
a mãe olha para o filho
– são fogos de artifício!
meninos sonham acordados castelos, dragões, bolas, cometas
e um país imaginário
sem balas perdidas.
E fiz questão de que esse poema estivesse no livro, justamente por conta da representação que ele causa, ou seja, a vida por um fio, a opressão social como causadora do drama, do desequilíbrio que passamos.
Em Aprendizagem Cinza (2016) e Faz Sol Mas Eu Grito (2018) há toda uma preocupação social que permeia do início ao fim. Já em Todas As Quedas São Livres há uma certa leveza, um exercício de fazeres poéticos. A liberdade do equilíbrio, do desequilíbrio e da queda. Há um certo tom oriental de Bashô, Nempuku Sato, Helena Kolody e até Quintana.
FERNANDO ANDRADE: O conhecimento já pegou fogo em vários livros como O nome da Rosa. Ícaro sonhou voar perto do sol para sentir o frêmito de uma liberdade criativa. Mas suas asas foram derretidas pelo sol. Estas imagens do calor, do sol, do fogo parecem bem interessantes quando próximas do ato de ler ou fazer literatura?
LEANDRO RODRIGUES: O fogo simboliza a vida, o conhecimento intuitivo, a iluminação, a paixão, mas também simboliza a destruição. A efemeridade de tudo é o ponto central a que deveríamos prestar mais atenção. Ícaro foi ousado. Não acho que a queda foi uma punição. Como no Eclesiastes em que “não há novo sob o sol”, tudo já foi dito e desdito, escrito e reescrito, feito e desfeito etc. E, no entanto, fazemos novamente e desfazemos. TÉ só o que nos resta: atravessar de um lado ao outro numa corda bamba com um vento incessante. Aproximamos do sol, sabemos que a queda é inevitável. E caímos. A poesia assemelha-se muito a isso tudo. Num poema do Todas as Quedas… chamado Música digo que as cordas velhas do instrumento são retiradas e estendidas de um lado ao outro como um varal, então o vento que bate nela é que traz a música. Ou seja, tudo existe e sempre existiu independente de nós. Estamos, podemos agir, transformar, voar, mas a queda, no mais amplo sentido, sempre vem, com ou sem rede de proteção. O livro é uma ode ao desequilíbrio e à queda que é mais forte que nós.
FERNANDO ANDRADE: Cite dois poetas que você dialoga quando monta um livro novo. E por quê?
LEANDRO RODRIGUES: Aí é que está. Sou uma espécie de ermitão com relação a grupos poéticos ou contatos com outros poetas. Isso não quer dizer que eu não leia e acompanhe alguns ótimos autores como: Rosana Piccolo, Rubens Jardim, Alberto Bresciani, Roberta Tostes Daniel, Tarso de Melo, André Merez entre outros (desculpe alguns que devo ter esquecido). Às vezes arrisco um ou outro contato, mas não lembro de ter mencionado ou conversado algo sobre um livro novo que eu estava fazendo. A não ser com aqueles que me presentearam com prefácios ou posfácios.
O fato é que o fazer poético é algo totalmente solitário em mim. Sou mesmo avesso a Saraus ou lançamentos de livros. Participei de poucos até agora. Prefiro ficar quieto no meu canto. Já implorei por leituras de poetas “consagrados”, não faço mais. No Todas As Quedas… a Penalux, através de seus editores Wilson Gorj e Tonho França, foi fundamental por ter abraçado a ideia e feito uma edição extremamente caprichada do mesmo. Sinto que lançar livro de poesia no Brasil é algo tão ousado e difícil quanto se equilibrar na corda bamba entre dois fantasmagóricos arranha-céus.
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