FERNANDO ANDRADE: Tuas crônicas me desnortearam um pouco, pois aparecem para mim como conteúdos daquelas caixinhas que são maiores e dentro surgem de menores tamanhos. Esta relação de tamanho, espaço, surpresa, quase mágica, ou para ser mais imagético, tirar coelhos da cartola, é o que você faz com suas escritas. Por dentro de cada teor tem outro cuja semântica se altera de acordo com o assunto tratado. Como foi produzir todos estes textos, tendo em vista o que mencionei?
ANDRESSA BARICHELLO: Obrigada pela sua percepção sensível quanto ao fato de que a minha forma de escrever é sempre por meio do “método do desdobramento” (ou seria do descobrimento?). A imagem da caixa é ótima porque serve de metáfora para o que sinto quando inicio um texto: vejo-me de olhos fechados diante de uma forma plana, sem muitos relevos. Então encontro a saliência da tampa e ao abri-la encontro outra caixa, outra saliência, outra caixa, outra saliência e assim por diante. E acho que me dou por satisfeita no momento em que suponho ter tocado o coelho, o quente, o que tem vida. Eu anseio por essa surpresa; abrir, abrir, até onde já não seja possível abstrair o corpo. É esse o jogo que me interessa na escrita.
FERNANDO ANDRADE: Há uma agilidade sua de raciocínio no pensamento quando formula o texto. Percebo isso pela precisão das imagens, metáforas, com o encadeamento de um discurso linguístico que opera sempre em coerência não com que você pensa sobre algo, mas sim, uma fina inteligência sobre as coisas, com um alto domínio da língua. E isto foge à estereótipos e a perfis de gêneros. Você quando começa um texto esta filigrana de afeto sobre o texto, você repara?
ANDRESSA BARICHELLO: Muito obrigada, Fernando. Penso que o afeto desencadeia o texto, sem ter um nome, e faz companhia durante toda a escrita. Ao final esse afeto continua sem nome, mas temos o texto. E, se tudo der certo, uma sensação partilhável. A sua escolha pela palavra filigrana é bonita. O afeto como a marca d ́água ou como aquele fiozinho de ouro soldado com toda delicadeza. Eu gosto dessa imagem, de pensar o afeto como a “cereja do bolo”. Mas parece que tendo a enxergá-lo diluído na massa, como essência de baunilha. O texto, depois, é a fatia.
FERNANDO ANDRADE: O distanciamento da crônica, aquele autor que viu o fato ou ouviu de terceiros e conta de orelhada, parece passar batido por você. Como as experiências que você acumula se coadunam em escrita?
ANDRESSA BARICHELLO: Uma das grandes dificuldades que sinto é lidar com a suposição leitora acerca da “verdade”; o risco que assumo de que tudo seja lido como autobiográfico. Às vezes eu me sinto como uma criança mentirosa. Aquela que tirou férias breves com a família e narra uma série de peripécias imaginárias, as quais são tomadas pelos outros como experiências concretas pelo fato de serem verossímeis e de essa criança ter voltado bronzeada para a escola, em pleno inverno. Na mesma medida em que as minhas experiências pessoais são um recurso para a escrita, também faço de mim um personagem. Não é possível ver, ouvir ou supor um fato na rua e narrar a partir das próprias verdades íntimas? Gosto da ideia de que escrever é também se apropriar das experiências dos outros injetando nelas emoções que são nossas; a “casca” do que foi vivido pelo outro servindo a acolher o que está nas entrelinhas do texto. Nesse caso em termos de entrelinhas é que havia mais verdade, talvez; mas não será sempre assim em qualquer gênero, até quando exista um narrador onisciente e diversos personagens? Em que medida nós que escrevemos estamos dispostos a nos deixarmos confundir com “os monstros” que criamos? Essa é uma pergunta que me diverte e que me parece fundamental para as pessoas que sentem pudor em escrever, por exemplo.
FERNANDO ANDRADE: Agora uma pergunta mais geral. Você acha que o poeta da escrita precisa fugir do senso comum das coisas para atravessar os objetos do cotidiano, ou suas descrições, e aí então chegar numa fantasia ou imaginação da coisa sentida pelo leitor?
ANDRESSA BARICHELLO: A expressão senso comum me deixa sempre intrigada pois ao mesmo tempo que ela remete ao que não traz algo de novo ela também expressa um ponto de convergência possível, um encontro de experiências. Talvez a graça da escrita passe um pouco pelo desejo de tentar revitalizar o que é tido como “senso comum”. Acho que a pergunta “será que isso é muito senso comum?” deve ser evitada no processo de escrita porque o que há de mais senso comum é a tentativa de “rocambolizarmos” demais os nossos textos. É uma armadilha que está sempre à nossa espreita: cairmos no senso comum ao tentarmos fugir dele e conseguirmos dizer alguma coisa mais interessante justamente quando, à primeira vista, não sentimos ter produzido nada demais. Essa é uma apreciação que só vai acontecer no depois, com a ajuda do leitor.
FERNANDO ANDRADE – Qual é a experiência para a escrita morar num outro país? Ter uma noção de estrangeirismo do que foi ou é próximo?
ANDRESSA BARICHELLO: A experiência de morar em outro país (no caso um país onde a língua é a mesma e ao mesmo tempo não é a mesma) é fonte de um deslumbramento pela palavra que se renova a cada vez que descubro uma expressão diferente, um uso diferente, uma outra forma de construir uma frase, expressar um sentimento. E aí não importa o fato de que eu talvez nunca possa usar essas mesmas formas; um certo prazer em compreender algo e reconhecê-lo sem a obrigatoriedade de incorporá-lo. Gostar do que é do outro. E de mostrar o que é meu para o outro. Perceber como a língua também molda jeitos de ser, possibilidades de se fazer entender e de entender os outros. A posição de ser um estrangeiro ao mesmo tempo em que é desconfortável é uma forma de exercer liberdade.
Constatar que ser “diferente” é a principal fonte para o interesse de uns e para o desinteresse de outros reforça que no fim das contas a espontaneidade é um grande valor. Esse amadurecimento quanto ao “bem, eu sou assim, essas são as minhas referências e o jeitinho com que sei fazer, pelo menos por enquanto” fez e faz coisas importantes pelo meu trabalho pois também na escrita por mais possamos adaptar e incluir novos hábitos e estilos há coisas que não poderemos abandonar para o bem e para o mal.
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