Jozias Benedicto é escritor e artista visual, com especialização em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo pela PUC-Rio. Trabalha com videoinstalações, performances e pinturas que unem literatura e artes visuais. Participou da XVI Bienal de São Paulo e de diversos salões e exposições, individuais e coletivas.
Seu primeiro livro de contos, “Estranhas criaturas noturnas”, foi finalista do Concurso SESC de Literatura 2012/2013. “Como não aprender a nadar” conquistou o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais 2014 (Contos) e o Prêmio Moacyr Scliar 2019, da Diretoria da UBE-RJ. Recebeu, ainda, premiações da Fundação Cultural do Pará (2018) por “Um livro quase vermelho” e da Fundação Cultural do Maranhão (2018) por “Aqui até o céu escreve ficção”, a ser publicado em 2020 pela Patuá. Em 2019 lançou um livro de poesia, “Erotiscências & embustes”, pela Editora Urutau, que está editado seu “A ópera náufraga”, também de poesia, para lançamento em 2020.
FERNANDO ANDRADE: Seus contos lidam com o microcosmos dos apartamentos, casas, sempre com algum componente de classe social, cruzado pela estética e arquitetura dos moradores e seus espaços privativos por metro quadrado. Aí surge a piscina como um elemento incluído no “bolo” mas, de certa forma, desagregador, enquanto signo de liberdade, fora da oclusão social das paredes fechadas. Que tipo de pertencimento elas trazem aos contos? Ou não?
JOZIAS BENEDICTO: Todos os contos do “Como não aprender a nadar” têm um elemento em comum: as piscinas, que tanto aparecem em casas ricas (“a casa a mais bonita de toda a cidade”), em amplos imóveis de luxo ou em apartamentos com dimensões reduzidas (“uma piscina, uma pequena piscina, duas braçadas apenas para norte duas braçadas para oeste”), em casas de subúrbio (“do lado da churrasqueira, uma enorme piscina de plástico é o centro das atenções”), em espaços de transgressão (“uns michês entraram na piscina e tiraram a roupa mas, diferente deles, eu estava puro, eu sempre estive puro”), em sonhos, em reminiscências, em delírios, em viagens, em exílios. Podem estar inacabadas, no alto de um prédio construído sobre as ruínas de um cemitério de escravos; nas lembranças infantis de uma fazenda, rodeada de pavões; ou mesmo sem água, coberta com telhas de amianto – “e é lá dentro da piscina vazia que eu dormia, nos dias de calor, como se fosse um tubarão, com um dos olhos sempre abertos”.
As minhas piscinas, portanto, são um traço de união entre os diversos textos, seus enredos, seus cenários e personagens; mas também são, como você coloca, um elemento desagregador, que tem vida própria e que transborda as paredes fechadas, os limites de tempo, lugar e classe social.
O que a superfície mansa de uma piscina pode ocultar? Piscinas são um signo de liberdade, sim; mas também são como um outro mundo com regras próprias, onde você pode nadar e se salvar mas onde pode mergulhar e não retornar; um sempre possível (ou impossível) retorno ao útero; um signo de desafio, de risco, de transcendência, de superação.
FERNANDO ANDRADE: A dinâmica das famílias é muito bem filtrada por você em certos contos como o do pai que tem, por certo, uma herança na qual os filhos estão de olho. Você acha que uma casa com piscina é um componente a mais no status social, ou a água ali armazenada tem uma particular conotação de imagens/metáforas que encobrem uma “paz familia ‘mbora, também, muito hipócrita? Fale disso.
JOZIAS BENEDICTO: Este texto, “Retrato de família na borda da piscina”, tem uma pegada de conto policial, meio noir – um personagem pensa que “parece um conto de Rubem Fonseca”. Nele, a piscina é um dos detalhes que compõem a descrição do ambiente de uma família: uma casa ampla em um condomínio, com obras de arte, pratarias, cofre com joias, uísque 12 anos, tapetes persas, “luxo sem ostentação”. O pai, viúvo e com uma boa aposentadoria, os filhos criados, uma família aparentemente sem problemas – mas a narrativa aos poucos vai desvendando uma realidade oculta – e a piscina se mostra o lugar onde o pai, “nadando nadando nadando”, se refugia dos filhos que disputam a herança e que são capazes, em nome dessa noção hipócrita de “paz familiar”, de planejar “uma medida radical”.
Em outros contos, como “A rainha do lar” e “A casa com piscina”, é um símbolo de status, de conquista, de meritocracia, de acumulação capitalista – “a piscina de nossa casa brilhando azul-safira como uma pedra preciosa engastada em um gramado verde-esmeralda” – mas também catalisa extravagâncias, pequenos delitos e até tragédias.
Esfinge, elemento de contraditório: “a água da piscina está límpida, azul, convidativa” versus “a água da piscina está feia, verde, podre” – as duas situações opostas em um mesmo texto, um conto-dentro-do-conto, “Vingança”.
FERNANDO ANDRADE: O sentido do texto pode ser também um espaço semântico para aquilo que fica mergulhado numa piscina calma, porém que dentro de um corpo morto, mas ainda com anima, pode simbolizar sempre o que fica interdito até a hora de uma revelação de um desfecho como um pesado nocaute. Esta é a beleza do conto? Afundar os sentidos para eles virem à tona em algum momento?
JOZIAS BENEDICTO: Gosto muito de escrever contos, nos últimos tempos estou me dedicando bastante à poesia e também trabalhando em textos mais longos, porém a minha produção em contos é a que tem aparecido mais e obtido reconhecimento: dois prêmios para “Como não aprender a nadar” e prêmios para dois livros inéditos de contos (“Um livro quase vermelho” e “Aqui até o céu escreve ficção”, este em fase de edicão pela Patuá). E não se pode fugir da frase famosa do Cortázar, “o romance vence sempre por pontos, enquanto o conto deve vencer por nocaute”. É o que você coloca, em um paralelo entre o conto e a piscina, quando os sentidos mergulham, submergem, até virem à tona em uma revelação, o “nocaute”. Como na frase do Ricardo Piglia, que usei como uma das epígrafes do livro: “a psicanálise e a literatura têm muito a ver com a natação”, e isto fica bem claro no último conto, que dá nome ao livro e o fecha.
Apesar desta minha predileção pela narrativa curta, procuro sempre trabalhar os livros não como uma junção de pedaços díspares mas como fragmentos conectados – não deixam de ser contos, podem ser lidos aos poucos e em qualquer ordem, mas por outro lado o leitor atento a toda hora é confrontado com “pistas” (verdadeiras ou falsas, como em uma história de detetives) que apontam para relações possíveis ou impossíveis entre eles. Um pouco como se um quadro geral se tivesse quebrado em estilhaços e estes têm vida própria mas ao mesmo tempo podem se encaixar de novo, como em um quebra-cabeça – e decidir por juntá-los e como o fazer é outro desafio para o leitor. Neste livro o elemento mais óbvio de junção são as piscinas, mas há muitos outros: personagens, situações, cenários, clichês – que aparecem e reaparecem por todo o livro, como o leitmotiv de uma ópera, às vezes mais forte, outras vezes apenas murmurado ao longe, basta saber ouvir.
FERNANDO ANDRADE: Há um conto chamado “O nadador”, do John Cheever, onde um personagem passeia ou caminha entrando e saindo de casas com piscinas, do subúrbio de uma cidade norte-americana. O que aquele conto tem de familiar ao seu livro e que correlações você pode tirar do seu livro e do conto em especial?
JOZIAS BENEDICTO: O conto do escritor americano John Cheever, uma pequena obra-prima, deu origem a um filme, “The swimmer” (1968), dirigido por Frank Perry, com Burt Lancaster. Foi um filme que vi bem jovem e que me marcou muito, e ao escrever este meu livro usei um conceito dele, o das piscinas que formam um “rio”. Logo no conto que abre o livro, “Geografia”, o narrador se transforma em um pássaro, um guará, e vê do alto algumas paisagens que serão ambiente das histórias; mira uma piscina de onde “sai um filete de água um pequeno riacho subterrâneo que passa pelas outras piscinas, cheias ou vazias, e que vai engordando rumo às lagoas onde aflora e ao rio e ao delta e ao mar e finalmente chega ao longe ao muito longe”. Na verdade, trabalhei com a minha memória do filme, que só fui rever com o livro já publicado, e o conto só fui conhecer recentemente, conversando com você sobre esta entrevista, mas as ideias que retive e modifiquei mentalmente ao longo do tempo vieram à tona no livro.
O cinema é uma de minhas influências, na juventude fui um rato de cinemateca, e ao escrever os contos deste meu livro algumas imagens de filmes foram muito fortes e me inspiraram. A das piscinas que formam um rio, um fluxo, é uma delas, outras são: o corpo boiando na piscina de “Sunset Boulevard”; as águas com vida, depositório de memórias e desejos, no Quarto em “Stalker”, de Andrei Tarkovsky; os musicais aquáticos estrelados pela Esther Williams; as enumerações do “Drowning by numbers” , do Peter Greenway; o nado incansável de superação e morte em “Gattaca”; um relacionamento gay em crise em “A Bigger Splash” – e este filme me leva às pinturas do David Hockney, outra referência forte em meu livro.
Já nas dedicatórias do livro explicito a minha admiração por figuras míticas, vindas do cinema ou do esporte. Inicialmente dedico o livro às “criaturas das águas”: Esther Williams, Johnny Weissmuller (nadador olímpico transformado em ator de cinema, o imortal Tarzan) e Greg Louganis (nadador olímpico, hoje ativista LGBTI). As três criaturas das águas vão emprestar seus nomes a personagens dos contos. E dedico o livro também à nadadora olímpica Maria Lenk, “que tentou mas não conseguiu me ensinar a nadar” (o que é verdade, quando criança fiz aulas com ela, mas não consegui passar de um arremedo truncado de crawl).
Outras admirações, da literatura, aparecem nas epígrafes: Kafka, Borges, Elvira Vigna, Torquato Neto, Hilda Hilst, Lêdo Ivo. Luiz Ruffato, que escreve um texto de apresentação, é uma referência importante, muitos dos contos do livro foram discutidos com ele e o grupo de sua oficina literária na Estação das Letras.
Be the first to comment