A vida a seguir – conto de Adriano B. Espíndola Santos

ADRIANO 2020 - A vida a seguir  - conto de Adriano B. Espíndola Santos

 

 

Um abalo ao sair do quarto. Vivalma não vi. Redundância. Devo corrigir: não me atentei, por um lapso, de que quedava só. Supostamente pelo sonho. Estava numa casa na praia, que parecia ser de minha família. Estávamos reunidos em volta de uma mesa enorme: eu, meus pais, meus três irmãos, e uns dez primos. Ao fundo, via a figura diáfana de meu avô, sem expressar palavra; falava com os olhos, somente “rindo da arrumação”. Eram esses seus costumeiros dizeres de homem simples. Efusivamente, meu pai se levantava da mesa e ia falar com um e com outro.

Chegou a tocar a minha mão, me abraçar; me acalentar, com toda a sua doçura peculiar. Há quanto tempo não sinto o toque de sua pele? É descomunal o abismo entre nós, apesar das memórias e dos cheiros guardados. E falo porque sua passagem se deu de modo repentino; ou seja, não tivemos o instante do último adeus. Mamãe, não, se foi conforme o dedilhar lento nas telhas do piano. Não se furtou do prazer até a penúltima semana, quando resolveu se dedicar a ser passarinha; risonha e delicada no trato. Com a ida da matriarca, nosso mais profundo remanso, meus irmãos, um a um, tomaram rumos diametralmente opostos. Como fiquei em Santa Helena cuidando da casa de meus antepassados, e por ter sido a mim, o único solteiro, confiada a guarda de seus bens e a “manutenção da beleza da casa”, para servir de veraneio, não arranjo tempo nem dinheiro para outras distrações. Ou seja, quando muito nos vemos, sendo muito otimista, nalguma ceia de Natal. Esse ano já descartaram: Luís e José Antônio porque vão à Europa, com suas respectivas famílias. Nem sei como e o porquê de tanta ousadia, com essa pandemia arrancando vidas; mais um motivo para a minha preocupação. José Antônio, com o seu ar habitual de me desconsiderar, jura que sim: “Calma Jorge, sempre exagerado; daqui para lá estará tudo resolvido”. Fato é que, de todos, sou o mais comedido, e não reconhecem. Sempre fui assim.

Talvez seja esse o motivo de minha estagnação nesse lugar; falo no sentido da passividade inata, própria de um homem regular. Lena falou, o que me magoou muito, tempos atrás: “Jorge, esse seu jeito apático, resignado e acostumado às coisas comezinhas não lhe trará grandes novidades. Com cinquenta anos, você quer mesmo passar pela vida?”. “Lena é uma parada!”, mamãe dizia.

Intrépida, puxou à minha avó materna, italiana de nascença, que desbravou o Brasil para, depois, se apaixonar e casar com um fazendeiro interiorano; “quando se cansou de aventuras”. Lena, Luís e José Antônio têm outro ritmo, e eu os amo mesmo assim – não sei se a recíproca é verdadeira; não me importo, ou tento não me importar. Pena que não sabem um terço de minha vida, dos meus afazeres no campo, da lida com os meus. Ainda que sutis, esses ares trazem sublimes novidades; um amanhecer a cada esquina que o vento atravessa.

 

Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor dos livros Flor no caos, 2018 (Desconcertos Editora), e Contículos de dores refratárias, 2020 (Editora Penalux). Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados nas Revistas Berro, InComunidade, Lavoura, LiteraturaBr, Literatura & Fechadura, Mallarmargens, Mbenga, Mirada, Pixé, Ruído Manifesto, São Paulo Review e Vício Velho. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto

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