Anderson Estevam Martins (1987), é paulistano. Jornalista e escritor. , é pós- graduado em Jornalismo Literário Literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL), e escreveu reportagens para revistas e websites nacionais. Aluno do CLIPE 2018, finaliza a sua primeira coletânea de contos, ainda sem previsão de publicação. Compõe o coletivo de escritores Água na Peneira.
Este é um conto estranho, bizarro até. Engraçado. Ao menos no que se convém chamá-lo.
Uma história que não dá o tom na primeira linha, que enrola, complica, descumpre todos os preceitos e premissas. Por isso, não espere tramas bem explicadas, grandes narrativas, aliás, não espere nada, é apenas uma leitura gratuita. Desagradável. Imprecisa. Na melhor das hipóteses, esse conto será sua companhia, como um afago, ou um suspiro na noite. Breve e
pueril companhia.
Nesta história, imagino você, num instante, sentada sob a cama feita, mãos apertando o rosto, maçãs inchadas de tanto chorar. Pode ser que fosse dia, ou noite, mas nada disso importa. O que é imprescindível: você sozinha no apartamento. Seu próprio lar. Nem mesmo fantasmas vagavam pelos poucos cômodos, diminuindo consideravelmente as chances de assombro. De certo algo estava errado, ninguém chora sem motivo. Pergunta idiota! Show, don’t tell, diria Chuck Palahniuk. Se você não fala, só chora, é minha a tarefa ingrata de revelar.
Veja bem: as louças estavam em ordem, assim como as contas, todas pagas, e a plantas regadas, o lixo separado em sacos plásticos, o quadro indiano pregado na parede. Tudo em ordem na casa. Até mesmo as formigas evitam – ao menos até aquele momento – qualquer interação com a cozinha. Impecável, eu diria. Impecável. A geladeira cheia de comida, cervejas, sorvetes, legumes. Vida saudável e aulas de yoga, musculação e pilates. Corrida aos fins de semana. Brindes e fotos do cume de Kilimanjaro. Tudo pelos oráculos sociais, redes, feito aranhas desordenadas e babonas. Está tudo lá, pode ter certeza. E já que você não me conta nada, posso presumir o que vem a seguir.
Piglia, o argentino, uma vez disse que as histórias podem ter apenas duas naturezas distintas: de mistério ou de amor. Um acerto e tanto, já que a sua história é um conto de amor. Sim, uma história de estranheza, mas que tem amor. E mistério, e tudo o mais. Deve ser uma boa história, afinal, há mistério e amor e uma grande revelação ao fim. Definimos: esta é a melhor
pior história já lida!
Você chora e não para, pranto sem fim. Um mistério daqueles que faria Edgar Allan Poe ir embora. Ou melhor, não é ele quem chega, batendo a porta, bigode em riste, estremecendo de raiva com toda a situação? Ed – vou chamá-lo assim – se encosta na soleira, encaixa o braço no lado escuro da madeira, e te encara. Talvez nesse momento, ele comece a falar do que te faz chorar, de tudo o que podem ter vivido juntos, de como a impermanência da vida soterrou o que restava de vocês dois. Talvez, nesse momento, as palavras sejam armas pontiagudas voando no ar.
Ele é categórico: não aceita ser traído, substituído, ou que a trama entre vocês não tenha nada de sombrio. Pela limpeza excessiva, você deve ter falado mal dos corvos, gralhas e gatos pretos que ele gostava de trazer para casa. Pegava da rua mesmo. Doido de pedra. E queria enfiar na casa. Quem sabe? Ou talvez fosse porque tivesse se encantado com Hemingway, músculos aparentes, pesca de Marlim na baía de Havana e tudo mais, explicando, de uma vez por todas, qual fora o motivo de sua viagem ao cume da tal montanha da Tanzânia. Você pode até negar, mas é o título do livro de contos do homem.
Quem sabe até vocês não tenham brigado por isso? Ele, sisudo e intelectual, você ativa e prática. Combinação explosiva. Tocada de leve, você reage, empurra-o e Ed fica uma fera, tenta te agredir, escorrega, e o quadro da mamãe elefanta despencando por cima do seu corpo oleoso e frágil. Morte, claro, pois é o que explica o seu caráter translúcido e leitoso, a boca aberta e os tormentos que te fazem chorar. Fim do mistério.
Ou talvez você chore, bem na pontinha da cama arrumada, pois não existe nenhum Ed, nenhum Hemingway ou mesmo nenhum narrador. O mistério, no fim das contas, é justamente não haver nenhuma razão para o choro. A vida basta para o choro desesperado.
Ou melhor, é justamente porque nada ao redor é suficiente para o seu coração inchado. Quem sabe? Esperemos que a moça diga alguma coisa.
Eu te disse: este é um conto estranho, bizarro até, de uma moça que chora na beira da cama. E que o narrador especula, tenta, desvirtua. Mente. Mas nada acontece. Até que a moça se levanta, deixa de chorar na manga da camisa, e vai pisando macio até a sala. Liga a luz, contempla os quadros de família, o Ganesha de batom pendurado do outro lado, o salgadinho murcho, a tevê ligada. Não há sequer um fantasma na casa para lhe fazer companhia.
Histórias sem fantasmas sempre são sobre tristeza, ela me diz, antes de se jogar no sofá.
A casa brilha e não há vento. Me parece um lugar abafado, Ed me diz, mas ela apenas suspira. De olhos fechados, você tateia com a mão esquerda o criado mudo, esfrega os dedos de leve sobre o controle do rádio. Play. Me contento apenas com narrar o que ocorre. Ba de ya, say do you remember, ela sorri, relaxando as feições, pois é a única que sabe o que vai acontecer. Ba de ya, dancing in September, Ed não tem mais relevância. Nem mesmo eu tenho alguma relevância, Ba de ya, never was a cloudy day, e tudo se revelou, feito um sopro. E não diga que não te avisei.
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