Fernando Andrade entrevista o poeta Pedro Mohallem

PEDRO - Fernando Andrade entrevista o poeta Pedro Mohallem

 

 

ENTREVISTA

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Fernando Andrade: Se a ficção é um espaço da mente com personagens que à luz do teatro ou do cinema encarnam a carnalidade de um eu, já no poema transige um esforço a mais para amalgamá-lo? Pois estamos no campo da linguagem, onde tempo e espaço parecem odes aos efeitos de uma galáxia (universo) muito cinética. Dentro do seu livro como se dá esta reflexão sobre o tempo que parece ser tão dilatado, sem posições fixas?

Pedro Mohallem: Na poesia lírica, a manifestação verbal de um “eu” – que ora se confunde com o autor, ora se desvencilha dele – é um elemento fulcral, pois o poema se dá no atrito entre essa consciência individual e o externo. Presume-se que o que se diz no poema lírico, por mais objetivo que seja, tenha passado pelo filtro da subjetividade (ainda que fictícia). Como poeta, eu não diria que a poesia demanda mais esforço para encarnar o outro “eu”; pelo contrário, tendo a achar o ofício do contista e do romancista muito mais meticuloso nesse sentido. A meu ver, o poema lírico (não apenas ele, mas isto me parece intrínseco a sua constituição) se dá maior liberdade quanto a determinações espaço-temporais: a luz é projetada mais para dentro que para fora, o que lhe confere universalidade. Por isso, mesmo que o leitor nunca tenha sequer pisado no Cabaré-Verde de Charlerloi, sentirá o que Rimbaud sentiu quando o sol das cinco da tarde iluminou seu copo de chope.

Essa indefinição espaço-temporal marca presença em meu Véspera; Debris, não apenas enquanto aspecto universalizante da lírica, mas enquanto condutor do próprio fio temático do livro: o que propus foi situar o sujeito lírico em um presente incerto, suspenso entre o que passou e o que virá, evidenciando a fatalidade de que nem um, nem outro existem. Esse “eu” ora se vê na iminência de atravessar uma porta, ora se vê recoletando afetos perdidos; ora arquitetando o próximo poema, ora dizendo tarde demais a palavra necessária. É como se caminhássemos sempre entre escombros, mas justamente deles tirássemos o sentido de nossa existência, seja pela memória, seja pela esperança.

 

Fernando Andrade: Há uma musicalidade até bem trovadora, de um certo canto medievo, onde baladas eram muito bem ritmadas e bem construídas. Como foi este processo de semântica e gêneros?

Pedro Mohallem: Desde que comecei a escrever poesia, tive uma inclinação à versificação tradicional, sobretudo ao verso decassílabo. O ritmo regular, que por vezes culmina em formas fixas como a trova ou o soneto, é uma face da poesia que me interessa bastante. Tento encontrar um meio-termo entre os critérios formais exigidos por esse tipo de poesia e uma dicção mais leve, fluida, por vezes até mais prosaica. O desafio é não cair no pastiche: lendo os poetas do cânone, sobretudo os pré-modernistas, percebe-se um uso protocolar da métrica e das formas fixas, cada qual ajustado aos preceitos estéticos de sua época e região. Acredito que assim deva ser hoje em dia: não renegar o soneto (para citar a forma fixa mais exaustivamente praticada), mas saber atualizá-lo ao que são a língua e a poesia hoje. Não há um único meio de realizar essa atualização, nem ouso dizer que meu livro constitui a saída mais pertinente ao problema do anacronismo do metro regular – os poemas que o constituem lidam com isso de uma forma até muito passiva –, mas penso que o primeiro passo para remover a pátina acumulada sobre a forma fixa seja praticá-la com alguma consciência crítica. Vale mencionar o trabalho do poeta e crítico Wladimir Saldanha, que tem se empenhado em mapear uma nova geração de escritores brasileiros cuja proposta estética envolve revisitar as formas fixas. Além disso, posso citar dois contemporâneos que vão por caminhos que muito me interessam: Emmanuel Santiago e Paulo Henriques Britto.

 

Fernando Andrade – Você me deu a impressão que mexe com dois conceitos: lógica até dos sentidos e de gêneros. Eles parecem que possuem um movimento que deslocam os signos para uma não permanência de um significado único de leitura?

Pedro Mohallem: – É por aí mesmo! Acho complicado – para não dizer equivocado – atribuir a um poema um jeito “certo” de ser ler, mesmo sob o argumento de que quem o escreveu sabe exatamente o que o poema quer dizer. Embora eu seja o autor, não tenho domínio sobre sua potencialidade: o que se escreve não é, necessariamente, o que se lê. Uma das graças da poesia é essa, que poucas linhas possam sustentar múltiplas leituras. Gosto muito de quando compartilham comigo impressões de um poema meu e apontam possibilidades que me passaram despercebidas enquanto o escrevia. Eu não ambiciono que o leitor vá ao encontro do que me motivou a escrever o que ele está lendo, mas que o poema, abarcando também o que eu sinto, possa se comunicar com ele à sua maneira.

 

Fernando Andrade: Nos últimos poemas, você cria poemas reflexivos à autores do cânone literário e poético. Como foi processar esta influências ou mimetismos, dentro de sua própria poética?

Pedro Mohallem: Como parte significativa de minha escrita é composta por poemas traduzidos, quis reservar um espaço em meu livro de estreia para traduções que dialogassem com a porção autoral. Assim, a última seção, intitulada Debris (francês para “escombros”), cuida de homenagear alguns dos autores responsáveis por minhas preferências estéticas atuais. Não explicito no miolo do livro que se tratam de traduções – embora o leitor familiarizado com os nomes ali presentes de pronto reconheça os poemas –, até para que a unidade do livro não se fragilize em função de um entendimento equivocado da tradução poética como prática inferior à escrita autoral. A linha não é tão bem demarcada assim, de modo que, mesmo entre os autorais, há uma versão abrasileirada de um famoso haicai de Bashô e, entre os versos traduzidos, empréstimos de outros poetas contemporâneos. É nesse diálogo entre imortais e vivos que sentimos a poesia pulsar.

 

 

 

 

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