EU FUI UM MIGUEL — E VOCÊ? | por Franciorlyz ViannZa

FRANCYORLYS - EU FUI UM MIGUEL — E VOCÊ? | por Franciorlyz ViannZa

 

 

EU FUI UM MIGUEL — E VOCÊ?

 

A morte do Miguel tem várias óticas sociais, pois conseguiu abranger uma malha variada de preconceitos e chagas. Em casos assim, tendemos a sentir o golpe naquele “lombo” que nos marcou ao longo da vida. A segregação socioeconômica entre os “patrões” e os “serviçais” foi o meu lombo, meu golpeio e segredo – e hora de pôr as cartas na mesa.

Sim, já fui um Miguel na infância.

Miguel: a criança que fica pelos cantos enquanto a mãe varre, lava, enxuga e cozinha. A criança que, inibida, vai se aproximando do sofá onde o filho do patrão assiste ao Mickey Mouse. E fica ali, muda, confundida com um móvel. Às vezes, a patroa manda você sentar. Às vezes, esse mandado é acompanhado por um sorriso cortês. Às vezes, você come um pão e bebe um suco da bandeja do “principezinho”. Que fique claro: é um ato de bondade – ou será constrangimento moral? – dos patrões.

Vai ver, depois desses gestos, muito deles, sentiram-se em paz com a consciência, com a religião e com o padre. Pronto! No domingo, comiam a hóstia com leveza no espírito. Haviam garantido uma gleba nas regiões celestiais. Acho que até o “Pai-nosso” foi proferido com música ao fundo; coro de anjos. Dessa fonte de vaidade tola, alguns, internet afora, ainda bebem. Criticam uma mãe, sem praticar a alteridade: imaginem-se no lugar dela. Imaginem que ela se culpará pelo resto da vida por estar cuidando de cães enquanto o filho estava desprotegido nas mãos de uma inconsequente.

Sei bem o que é ser um Miguel transitando no paraíso alheio. O que é lançar um olhar de peixe-morto sobre os brinquedos do filho da casa; na época, os de fricção (na década de 90, quem tinha brinquedo de fricção era rico. Às vezes, você recebe autorização para brincar. No fundo, os patrões sempre acham que você está ali para entreter os filhos deles. As crianças estão isentas do preconceito dos adultos; o filho da casa é só uma criança também. Um Miguel precisa entender seu lugar de desconforto. Depois que o filho da casa se fatiga de brincar, Miguel deve voltar para a cozinha; lá, há sempre uma cebola e uma faca.

Em uma das muitas casas em que fui um Miguel, o patrão se incomodou tanto por me ver pelos cantos (e claro, comendo do seu repasto), que me levou ao quintal, e “sugeriu” que eu “quando não estivesse fazendo nada” pegasse uma pá, e juntasse o cocô dos cães dele – se não me falha a memória, eram dois porrudos. A quantidade de fezes? Recordo que eram muitos toletes. Mais para frente, sofri um ataque por parte desses mesmos animais (vasculhei aqui, no tornozelo, e a cicatriz dos caninos deles me fez sentir o pavor daquele dia, acuado contra um muro, e os bichos se revezando no ataque…)

Mas Miguel não é responsabilidade dos patrões, não é? A mentalidade é de que tudo se resume a uma relação trabalhista. Desde quando? Empregados domésticos não conseguem ter a delimitação correta do que é capitalismo e o que é a “falsa” impressão de pertencimento ao seio familiar do empregador. Nas cidades do interior, por exemplo, até a década de 90, seus moradores tinham a cultura de ir ao interior do interior “pegar uma menina” que desejasse vir estudar num município desenvolvido. Estudar era tudo o que ela não conseguia. Miguéis de dias de antanho.

Tem um tipo de Miguel mais avançado: aquele que se abriga na casa onde a mãe trabalha e mora. Fui esse também. E guardo cá uma cena, de um dia em que os patrões ficaram descontentes com a empregada e a mandaram embora, na hora. E este Miguel que fui saiu pelo mundo sem teto, salvo o céu de Deus.

Na terça-feira choveu. Uma chuva estranha. Sem nuvens. Sem uma gota de água sequer. Era uma chuva de gente. Choveu uma criança. Choveu do nono andar. Choveu de uma calha. Choveu de um elevador. Choveu de um colo indiferente. Despencou, mas contrário à semântica do verbo que emprego, ela subiu. Virou – como disse sua mãezinha – uma estrela.

“Miguel virou estrela lá no céu”.

Fui um Miguel. É meu lugar de fala também. E nenhum extremista/negacionista pode emudecer a voz (ou escrita) de um Miguel que conseguiu sobreviver o tempo suficiente para saber manejar bem as palavras.

Miguel virou estrela sim. Mas cá, embaixo, nós precisamos virar protesto.

 

Escritor. Teólogo. Professor de literatura. Oficial Ministerial do Ministério Público do Pará. Palestrante. Diácono evangélico. Pai do Arthur Lear, o reizinho. Os livros do ViannZa já ganharam os prêmios: Proex de literatura (org. UFPA); Dalcídio Jurandir de Literatura (org. Fundação Cultural do Pará); IAP de Artes Literárias; edital Seiva de Artes Literárias; menção honrosa no prêmio Samuel Wallace-Macdowell (org. Academia Paraense de Letras). ah, ia esquecendo o mais importante: ele gosta muito de ler.

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This Article Has 1 Comment
  1. Ana Meireles Reply

    Não existe o feminino de Miguel, seria Miguela? Não importa! O que importa é que tudo que foi dito retrata fielmente a condição vivida por muitos Miguéis, condição triste que foi a da minha mãe, a da minha avó e com certeza ainda é a de muitos outros que não são tratados com respeito e consideração, porque a mola deste mundo sempre foi o dinheiro, a condição social . As pessoas reproduzem o que receberam e , sorte, milagre, glória, os que nessa vida conseguem se burilar e escapar de agir com expressiva e repudiante desumanidade. Expressiva e repudiante desumanidade que se mostra nas posturas de muitos “ seres humanos” independente de religião, porque a hipocrisia afeta padres, pastores, espíritas, macumbeiros e outros cuja consciência de Amor ainda não despertou. Parabenizo pelo texto . Excelente!

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