Três poemas de Mário Baggio

mario sergio - Três poemas de Mário Baggio

 

 

Listas

Quase todos os meus amigos de infância morreram.

Celeste não morreu,
mas teve um filho que só viveu três meses,
e isso de alguma maneira a matou.

O vizinho da rua de cima, de média idade,
em cuja cabeça desabou um caramanchão,
esse sim, morreu.

A menina mais famosa da cidade,
a quem chamavam Dadeira,
não era minha amiga e não morreu por um triz:
o último rapaz, dos quinze que a estupraram, teve dó e interrompeu a farra.

Laércio, o que trabalhava mais de quinze horas por dia numa mineradora,
de quem há tempos não via o rosto,
hoje me contaram: morreu no estouro da barragem,
com lama acima do pescoço.

A única namorada que tive no ginásio não está morta ainda,
mas lembro-me de ter lido no Facebook que ela entrou em coma irreversível
e que todos deveriam rezar por ela.

A praça da cidade da minha infância,
que ocupava um quarteirão inteiro e tinha árvores perfumosas,
desapareceu: deu lugar a um prédio de apartamentos,
com duas vagas de garagem para cada um.

Antes, viver não era o mesmo que ter medo.
Benjamin Button viveu a vida ao contrário.
Nós não: somos o contrário de Benjamin Button.
Envelhecemos.
Temos medo.
E fazemos listas.

 

 

Debaixo deste céu há escuridão

Saiu de casa em busca de um emprego.
Disseram-lhe: Só te daremos trabalho se te cortarmos uma mão.

Estava há muito tempo desempregado, tinha filhos. Aceitou.

Pouco tempo depois o demitiram e ele voltou a buscar trabalho.
Disseram-lhe: Só te daremos trabalho se te cortarmos a mão que te resta.

Ele não podia ficar sem emprego, tinha filhos. Aceitou.

Foi despedido em pouco tempo. Voltou a procurar trabalho.
Disseram-lhe: Só te daremos trabalho se te cortarmos a cabeça.

Ele precisava trabalhar, tinha filhos. Aceitou.

Agora não trabalha mais
porque não tem mãos para executar
nem cabeça para pensar.

Disseram-lhe: Não serve para nada.

O filho mais velho saiu hoje cedo para buscar trabalho.
Voltou na hora do almoço sem uma das mãos.
Disse: Mãe, pai, tive sorte, consegui um emprego!

 

 

A tristeza profundíssima

O melhor poeta da minha geração
foi internado num hospital psiquiátrico.
As enfermeiras, armadas de seringas curativas,
atormentam-no.
A cada vez que tem um verso na ponta da língua,
elas o imobilizam para que engula um comprimido
— e o verso junto.

O melhor cantor da minha geração
conseguiu emprego num call center
no turno da noite.
Ele segue o script dado pelo supervisor
e sempre atende às ligações
como se estivesse cantando.
Do outro lado da linha
o cliente furioso não percebe
o Dó Maior cheio de tristeza que sai de sua boca
quando diz “Vamos estar providenciando o seu pedido”.

O homem mais beato da minha geração
trabalha de forma clandestina matando jacarés.
O couro dos bichos é enviado por barco para o Senegal.
Também por barco chega o pagamento,
e por isso atrasa tanto, dizem os chefes.

O melhor matemático da minha geração,
quase morto de fome,
decidiu ser coach depois de analisar
as estatísticas e as probabilidades.
Outro dia sussurrou-me ao ouvido: “O valor do Pi está errado”.

O melhor cozinheiro da minha geração
espreme laranjas e vende churrasquinho
num quiosque de praia.

A mais bela da minha geração
organiza a fila na entrada do museu.
Ainda tem o sorriso bonito,
apesar dos dentes cariados.

O melhor comediante da minha geração
morreu ontem em absoluta miséria:
seu corpo ossudo, a dentadura triste
e o rosto num esgar de pânico e solidão
foram bem recebidos pela Morte,

que gargalhou.

 

Mário Baggio é jornalista, escritor e blogueiro. Mantém o blog www.homemdepalavra.com.br, em que divulga diariamente sua produção literária. Publicou 3 livros de contos: “A (extra)ordinária vida real” (Autografia, 2016), “A mãe e o filho da mãe e outros contos” (Autografia, 2017) e “Espantos para uso diário” (Coralina, 2019). Publicou textos em várias revistas eletrônicas, entre elas Vício Velho, Diversos Afins, Gueto, LiteraturaBr, Fluxo, Ruído Manifesto, Escrita Droide e Subversa. Participou  da AntologiaRuínas, da Editora Patuá. Participou da Antologia Fragua de Preces, editada em espanhol, ao lado de centenas de poetas latino-americanos. Prepara dois novos volumes para 2020, um de poesia e outro de contos.

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