Três poemas de Igor Moroski

igor moroski - Três poemas de Igor Moroski
Igor Moroski – Nascido em Curitiba, criado no litoral do estado, sol em domicílio, 1998. Autor de Vermelho Medusa (Editora Urutau, 2020).

 

NÃO CAIA NO UMBRAL OU ALQUÍMICA DAS ÁGUAS REPRIMIDAS II
Para Milton Rosendo
***
Era um potro talhado em nébula
a respiração salina adentrando o sonho pela ranhura
o coração era uma poita sob o pântano da existência
que se reformulava entre o mover
das luas em submersos castiçais
não sei se eram as ondas
que me serravam a boca
ou se rebatia da volúpia do poema
este afago voraz
estava só
eu era o simulacro de um deus triste
um sol a amornar na vidraça do tempo em seu seio
era um saudosismo fetal, isto sei,
pois sucumbia de bruço sobre um navalhar espectral
onde a morte me afundava o dorso para o corte
de onde fenecia o orvalho mudo que névoa se teceu;
minha melancolia revisitada de infância
quando encaixava os baldes na cabeça
e às vezes dizia para mãe
que queria morrer –
ainda hoje maldito-infante
o poema se fez tablado para tua tristeza?;
mil louva-deus decapitados cirandeiam sob o pensamento
e fazem de ti a festa & o mortuário –
pode o homem postergar diante a última porta?;
há de ser minha vida rascunho para outra vida?;
planto palavras-sísmicas entre as semânticas-barricadas
como quem pela mente em distância reinventou a língua natal
não queria em qualquer estância ter nascido poeta
pois não desejo para alma o calabouço
pois não desejo a alma
somente;
era um potro talhado em nébula
com suas patas de louça fina
era o potro que eu fui: criança inconsistente
de olhos amolecidos na fabulação insinuada em insônia
& a trama vívida & alucinada de imagens
de quando eu passava os dias
enfurnado dentro das caixas de papelão
onde havia de mim o teatro a operar
um suicídio de mentira;
eu era este potro talhado em nébula
na brancura do espaço
feito um quadro-trauma
afresco puro do espírito das eras
imácula-transcorrida-inquilina-de-fogo-primordial
antes da vida nomear-me: homem, coisa humana;
sinto em mim
que os fluidos trafegam em transe
& algo que me envolve formiga
& peço que isto me leve
& que petrificada na órbita
a imagem da minha face já desconhecida
seja de apreço, de um reflexo irmão,
como as daninhas que cresceram no parapeito
e deixei que vingassem
pois sei da vida o seu pulsar abafado
daquilo que se vai
cedo demais para ir;
pois eu era um potro talhado em nébula
umedecendo as flores
que se inclinavam em jejum
para a parcela venosa do meu coração.

 

 

TÍTULO EM ABERTO
***
O que sabem os pássaros sobre domínio?
o que deseja, afinal, esta vida que nos contamos
em parábolas de telefone?
um tiê-sangue brota do corpo:
há um banquete antropofágico –
me atento sentir a ânima da língua
e ver que as papilas gustativas no outro
se auto-provam;
quantas luas morreram em mim desde que nasci?
e o quanto disto
interfere no sal da minha existência?
sei que tendo ou não
esta celestial presença que se acumula
sou o prisma-etéreo para algo:
é uma entidade de negro-azulado que afora me habita;
e de mim engorda a boca d’uma ilusão-nevasca
e assim punge
e assim explode
feito a infância maldita de um astro-maior;
harmoniza, eu digo,
em mim o espanto
como se morassem-me os nervos de um lírio
quando no espírito ausente
tu furtivamente traz a geada no toque
e abisma esta matéria estranha
nos baixios de minha carne;
é de me deixar feliz e tonto
saudosista de supernovas e primeiros porres:
e nisto lembro-me o quanto me agrada ser chão;
e fundo-me no vácuo tal a casa que plantei vazia
para a estatura exata do nosso sonho
a qual se arrepia dentro
quando rasuro a noite no teu nome
quando arranho;
um ninho de lodo e flâmulas macias fervilham na minha sede:
é um lugar que se dilata e se acolhe:
é outra casa,
a de quando entro em ti –
onde a quentura do teu corpo conta
qual foi o solstício
em que nasceu;
raspas dos teus olhos como substrato
para este campo coalhado
das tantas coisas imaginadas
e tão esperançosamente extraídas de nós
hoje vultas e infrutíferas;
O Nada colhe e molda
nas conchas vãs das baldias mãos
a não-palavra, o sentido da não-palavra,
apalpada em um peso incógnita –
tal a língua esfinge
que devorou a primeira flor;
a palavra é insubstância concreta e natimorta,
a não-palavra é insubstância viva
e ambas planam em sua superfície insone
e ambas perguntam se o signo de si que veem
em si se reconhece
mas não podem aprofundar o íntimo objeto de ser algo
e permanecem sem resposta
pois são apagadas de consciência e pensamento
e seu sótão é o puro reflexo mental da imagem que causa a forma
a forma antes de ser imagem,
ainda não-imagem:
corpo-imagético que flutua;
a matriz da palavra é sem equilíbrio e paredes
antes de ser desprendida do divino;
então qual não-palavra sente se lhe digo
que apanho os teus seios como ânforas sagradas?
e qual não-palavra sinto quando os apanho?
meu amor por ti são mil vinhedos lustrosos de sumo
que cuido estéril em ti já sem o porquê
e me culpo por te amar só por sentir que te amo;
e sobrevivo em nós
no espaço deste silêncio incompleto e irredutível
que é o nosso amor que morre
sem precisar dizer.

 

 

FUGAZ-PICTÓRICA
***
Nunca fui desses que fodem e nem sei muito o que dizem
os românticos por entre os campos de tulipas;
o meu amor me afaga de mãos cansadas
e deixa assim no gosto da presença
as digitais postas em minha mandíbula
e me sobe o cheiro de algo que mora longe
de outra vida, seus dedos feito gomas cítricas
& aroma & morte natural & lembranças & saudade
& espírito decomposto em nós & que sob nós se resigna
lá fora o sereno veio de um outro lugar, mais ameno
pensamos em fugir para Bariloche, viver assim
orgânicos como o povo mapuche, dançar
& roubar os pinhões fora de época
tu ansiando a carreira de artista
eu querendo receber mínimo
para ter tempo de poesia
& de reverberar só
bando de aves
& surdas canções
que são de solitude
dessa que minha imersão
matura nos aquários de morfina;
tu me fita com teus olhos grandes
& orbita esse rosto amante, que tenaz
não é outra coisa senão um chão de carícia
te amar de todo recurso – não ser o peito galpão
não resguardar se sente ou esconder em monumentos
& em rancores engomados entre si como os cachos de uva;
então ter assim meu coração sem doma & nem pelego
nessa fase de transição onde na vida tudo é trôpego
& essa cal queimada, embebida em nosso corpo
é tão falsamente esperançosa & fragilizada
e por ser jovem não há nenhuma ciência
nem nenhuma memória além de moça
é preciso crescer nesse montante
de informações que de tantas
nos atentamos nas poucas
egos & entretenimento
os fascínios idiotas
do século XXI;
este poema
nunca foi
de amor;
nunca fui desses que fodem e nem sei muito o que dizem
os românticos por entre os campos de tulipas,
amigo, é tudo tão passageiro & fútil
a existência é um fogo-fátuo
& este poema também.

 

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