Resenha | Acima das fronteiras da água e do sal | por Paulo Rodrigues

 

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“deixa que minha voz flutue/ sob suas águas de sal”.
(Mell Renault)

 

O novo livro de poemas de Mell Renault traz quarenta e nove poemas muito bem costurados entre o azul-marinho e os destroços da manhã. São cento e oito páginas de travessia nos sustos da vida. A editora Penalux caprichou no trabalho gráfico, de modo que as belezas da coletânea Flor de Sal (2020) são destacadas.

Li e reli três vezes. A escritora, dramaturga e poeta sabe construir impactos através da linguagem. Diz como as ondas que comunicam no mar fundo e na periferia da praia.
Ela é experiente. Tem trabalhos publicados na Mallarmargens, Ruído Manifesto e colabora muito frequentemente com a revista InComunidade (Portugal).

Os textos estão dispostos na imensidão do mar. Nascem e flutuam nos olhos da poeta que contempla o sal das palavras. Observa os objetos, as pegadas, os restos de petiscos largados na mesa da memória. O filósofo Ludwig Wittgenstein afirmou: “as fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo”. Fica claro que as coisas recebem luz depois do tempero da poeta. Mell alarga as distâncias, eleva as palavras acima das fronteiras desgastadas pelo uso cotidiano.

Em Dádiva (2020, p.20), o discurso literário assume o canto improvável:

Vozes lunares
cantam
suas sortes
seus mistérios.
Eu
perecível
toco tuas águas
na condição de milagre.

O texto está estruturado em torno de dois períodos simples. Ampliando a semântica da poeta através dos verbos “cantar” e “tocar”. Eles se juntam nas águas para provocar uma pletora de sensações ao modo dos poetas simbolistas. Mell Renault utiliza uma forma de dizer próxima da fala, que valoriza o uso padrão do português brasileiro.
Aliás, este tom de brasilidade está impregnado em todos os versos de Flor de Sal.

Outro texto que chamou a minha atenção foi Fluxo (2020, p.22). Apresenta um complemento sinestésico para as vozes lunares do texto anterior:

Ser água
e louvar
a fonte materna
num
dançar de ciclos
[altas e baixas marés]
e saber
desmemoriada
semente
de cálcio
no mais profundo
da concha.

É uma poesia não dedutível, entre a discursividade e a ampliação das imagens. Este voltar ao estado de concha. Sem memórias. Anterior ao humano e a própria linguagem, lança a poeta novamente nas discussões do autor de Investigações Filosóficas. Ela não pode dizer claramente, nem pode calar, por isso assume o poema como modo de ser água outra vez.

Este dançar de ciclos é a poesia, assim como é a vida, a história, a humanidade.

Por último, vou me deter um momento num fragmento do poema Madrepérola (2020, p.85):

Carne
da mesma carne azul
das conchas
nasci.

A metáfora usa as conchas. São objetos que trancam a vida para ir moldando a si mesma com o áspero. Assim como a poeta faz com as impressões dos objetos, coisas e acontecimentos. O material de que é feita a vida e a poesia? Ela não sabe. Nós não sabemos. Pode ser de carne, sal, conchas. Pouco importa. Mell Renault se desmancha em reflexões sobre a existência.

Ela leva o leitor aos esconderijos da linguagem. Carrega as estrelas marinhas nos olhos. Ilumina “as âncoras afundadas e esquecidas” da poesia.

 

Paulo Rodrigues (Caxias, 1978), é graduado em Letras e Filosofia, especialista em Língua Portuguesa, professor de literatura, poeta, jornalista. É autor de vários livros, dentre eles, O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de Ninguém (Editora Penalux, 2018).

Ganhou o prêmio Álvares de Azevedo da UBE/RJ em 2019, com o livro Uma Interpretação para São Gregório. É membro da Academia Poética Brasileira.

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