Cinco poemas de Angelita Guesser

Angelita Guesser Literatura e Fechadura - Cinco poemas de Angelita Guesser

Angelita Guesser, nasceu no Rio Grande do Sul em 1976. Hoje mora em Porto com seus filhos e o escritor Huggo Iora com quem divide uma vida de poesias. Estudou Psicologia e Direito, fez formação em Psicanálise, também é mestra em política social. Adquiriu o hábito da escrita através da transcrição das sessões de psicoterapia em que trabalhou por 18 anos. Desenvolve seu lado artístico através das palavras e principalmente através dos desenhos. Lançou Foda-se (Ed. Autora, 2020) seu primeiro livro de poemas totalmente independente, seu segundo livro Entre um Eco e Outro saiu pela Editora Letramento, em julho de 2020.

 

#1

eu tenho que ser livre, preciso me fazer livre.
sinto meu corpo flutuar sóbrio e lúcido entre homens de meia idade.
minha antiga necessidade, que amolecia até os ossos não habita mais essa vida.
quando tudo me é digno eu rompo a morte e a transformação, e me revelo transparente de véu, sobre mim mesma a ponto de explodir vontade.

eu gostava da liberdade que tinha antes de conhecer as delícias de Fausto, de ser seduzida pela vibração dos eletrônicos, das cores pulsantes que embriagam nosso cérebro e matam envaidecido o instante.

inesperadamente eu preciso ser livre, preciso ser de outros e de mim mesma.
tonta que sou, me deixo cair naquele mesmo buraco assustador.

sinto saudade da pobreza neutra que atingia zonas aprisionadas de mim, eu que em ti, às vésperas do presente não buscava liberdade. mas hoje preciso me manter de pé, seguir me revelando no destino. hoje eu preciso me fazer livre.

 

*******

#18

quando eu tinha treze,
os dezesseis me foram roubados.
quando eu tinha dezesseis,
os vinte me foram doados.
na pureza de criança,
deixei ali,
no fundo falso de um casaco velho,
guardada, a minha inocência.

o velho que de mim cuidou,
roubou-me o pecado,
e de tanto morder a maçã,
com seu veneno foi amaldiçoado.

quando eu tinha treze,
treze terços foram rezados.
e aos dezesseis, tudo em mim
foi sepultado.
os vinte vieram sem dor,
e aos quarenta, ainda rasgam
a pureza da criança,
que ali,
no fundo falso da camisa rasgada,
estão guardadas
as dores da criança roubada.

 

*********

junte-se a mim dona maria, vamos sair pela noite e ver a banda passar. adivinha quantas cores tem o sangue que cai de meu ventre? quantos muros sagrados tive que pular? os sábios e os poetas me pintam de maria, mas até a lucidez tem seu nome. aqueles que roubam nossa alma, cobrem-se de petróleo e fundam cidades capazes de ter mil montanhas a escalar. criam o ópio dos pobres e a salvação dos ricos. vamos sair dona maria, buscar a morte do que somos. antes que tudo o que eu lhe disser seja tomado à força e o tempo passe. vamos dona maria, buscar a morte na vitrine do silêncio.

 

*********

um espirro de leve que leve para fora todo o ar preso aqui dentro por tantos anos que nem sei mais como contar na folhinha do supermercado que já está puída de tanto eu reciclar a contagem dos dias.

um espirro de leve e eu mais leve nem sei em qual momento da vida me tranquei como uma megera que desperdiça os dias contando os dias que viveu de misérias e de berros e de choros esperando o amor perfeito que nunca foi pra mim.

um espirro de leve que me leve para fora dos cacos desse termômetro que marca quarenta graus de um estado febril que ainda em prantos busca a satisfação de esfaquear tua macia pele na antessala da casa que vivemos trancados por anos a fio.

 

*********

durante muito tempo eu tive um sol gritando dentro de mim. ele jorrava raios de fogo e limpava o mal profundo. também

tive dias de chuva. que pelas fendas das paredes vazava feito sangue de menstruação sem controle. eu realmente não tinha controle sobre os raios de sol gritando no gotejar da chuva, eu não controlava os dias de chuva tornando-se tempestade. invasivos confrontavam-se e jorravam seus jatos sem controle. nos dias de mais ardência desistia de meu corpo. cambaleando sobre as dores do mundo num sopro ardente entendi que eu era vento em forma de mulher e na minha semântica prossigo, vez ou outra, ventando.

 

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