F.A: Você consegue sair de uma “intenção jornalística” como se seus contos fossem pequenas pautas do cotidiano de uma cidade para através da linguagem cuidadosa transformar esta matéria bruta em ficção, porém com a ideia de uma atualidade urgente. Como foi este desenho entre os dois gêneros?
A.M: ficção é resultado mais de uma certa abordagem que a linguagem faz da realidade do que de uma intenção propriamente. Portanto uma notícia de jornal pode, às vezes, ser tão ficcional quanto um conto ou romance. Na literatura, as fronteiras entre os gêneros estão cada vez mais borradas, fazendo com que a ficção se nutra de gêneros comumente conhecido como não ficcionais como a carta, a notícia, a entrevista. Desse modo, transitar por gêneros diferentes para a elaboração dos contos que surgem como minicontos, cartas, memórias faz parte do próprio exercício contemporâneo do fazer literário e ficcional.
F.A: Como foi desenhar cada arquétipo de personagens traçando este perfil invisível onde traços de fascismo e preconceito social transitam entre os espaços urbanos como a escola. Que trabalho da escrita foi preciso para estes contos ganharem tanto relevo?
A.M: O preconceito, a discriminação e a marginalização se manifestam de formas distintas de acordo com os espaços e o grau de vulnerabilidade dos sujeitos. É preciso estar atento à invisibilidade que atinge as pessoas não apenas por fatores materiais como é o caso dos moradores de rua, mas também quanto a questões afetivas, raciais e de gêneros. Muitos personagens surgiram de conversas com pessoas que vivenciaram ou presenciaram situações de miséria e abandono. Pensei numa escrita que se propusesse realista, mas que não fosse crua, que tivesse algo de poético em alguns casos. Em algum momento me vi escrevendo também sobre personagens que não vivenciavam a marginalidade social extrema da rua como casa, mas a marginalidade dos afetos. As escolas, por exemplo, são espaços muito idealizados pelas pessoas. Entretanto como parte de um organismo social doente, ela reflete as mesmas mazelas éticas que atingem o tecido social no qual ela está inserida. Infelizmente pode haver tantos fascistas dentro das escolas quanto na política.
F.A: As situações (eventos-enredos) são o cerne dos seus conflitos – o filho adotivo devolvido. Como foi encenar cada situação para que ela não se tornasse uma nomenclatura e tipificação de uma norma, revelando apenas mais um número?
A.M: Gosto de narrativas que contam histórias, que tenham nós, peripécias, problemas a serem resolvidos ou não pelos protagonistas. Tentei me esforçar para contar uma história e não fazer apenas exercícios estilísticos e metaficcionais tão comuns à literatura brasileira contemporânea (apesar de eu gostar muito desses exercícios também). No entanto queria me concentrar mais em contar aquelas histórias, pois nesse caso, o “o quê” precisava ter mais relevância do que o “como”.
F.A: A rua já foi mote e tema de muitos escritores. O que para você ela tem de emblema? Ou catarse, para dramatizar percursos, anonimatos, e outras características?
A.M: A rua é o “não-lugar” onde tudo acontece. É um espaço inesgotável de acontecimentos cotidianos, local em que todas as pessoas indistintamente estão em algum momento, independente da posição social que ocupa. Alguns fazem dela moradia por diferentes motivos, outros são apenas transeuntes ou tiram da rua o seu sustento. Na rua o homem casado flerta com o garoto sem que isso abale de alguma maneira o ambiente privado de seu casamento. Na rua o que vemos são rostos, não identidades. O que escrevo inspirando-me nos rostos que vejo nas ruas só pode ser ficção, será apenas o que imagino por trás desses rostos que, independente de quem os vista de fato, merece a empatia de quem por eles passa. Os contos desse livro são resultado desse exercício de empatia tão ausente principalmente nas ruas das grandes cidades.
F.A: Vamos supor que você fosse o editor de um jornal e mandasse um foca para cobrir um certo fato de uma questão premente urbana. E como pauta para esta cobertura fosse importante a leitura de um livro de gênero social. Qual seria o livro e por quê?
A.M: Não sei especificar muito bem o que seria um livro “de gênero social”, mas penso em “Cidade partida” de Zuenir Ventura. Seria uma referência importante. Trata-se de um trabalho jornalístico que, conforme afirmei antes, borra a fronteira do literário devido à linguagem com que se constrói. É uma obra que expõe as contradições das zonas urbanas do Rio de Janeiro. A linha estreita que separa os ricos da Vieira Souto dos pobres do Pavão Pavãozinho, Vigário Geral, por exemplo. A desigualdade é a principal marca dos espaços urbanos, exacerbada a cada dia com o aumento crescente da população de rua. Além do Rio, toda cidade é um pouco essa “cidade partida” de que fala o jornalista Zuenir Ventura. Portanto oferece aos ficcionistas uma gama imensa de possibilidades de criações de personagens e de reflexões sobre como se inscrevem nas fronteiras das muitas cidades existentes dentro de uma só.
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